O interno feminino

Ora vamos lá ouvir o que nos conta o amigo Ortigão, chegadinho de Paris carregadinho de novidades e de opiniões.
Encontrei-o na Feira da Ladra, em Lisboa, numa banca do alfarrabista onde não é raro desaguarem raridades como as suas (do Ortigão) «Notas de Viagem, Paris e a Exposição universal (1878-1879). Ouvir «Então, que tal Paris?», foi para a ramalhal figura como que a deixa para a sua caudalosa entrada em cena, para as impressões e considerações que trazia já muito à mão, prontas a desembalar e exibir diante do pasmo e deslumbramento de quem o quisesse ouvir. 
Tudo fresco, inédito, moderno, na sua fala intransigentemente vernácula, esquiva a qualquer reforma vocabular ou orthográphica: «Entre o Pariz de hoje e o Pariz de ha nove annos, a differença exterior que mais impressiona é a do aspecto das mulheres”, prologou ele.
A coisa prometia, pelo que deixava adivinhar.

É que Ramalho Ortigão não é um qualquer portuguesinho perdido entre as 13 milhões de pessoas de todos os cantos do mundo que na altura visitavam Paris e a sua pujante Exposição Universal. A Exposição e não só. Ao nosso Ramalho, sobrou-lhe ainda tempo para visitar a Sorbonne, o collegio de França e a escola de medicina e para disso tudo nos dar notícia. Mas tempo também, como seria de esperar, para admirar as muitas exibições que em Pariz davam conta dos avanços da Agricultura, das Artes e da Indústria. E em tudo isso se alarga o ramalhal assombro: o telefone de Bell, o phonographo de Edison, e até a cabeça da colossal estátua da Liberdade destinada ao porto de Nova York onde «no logar do cerebello, podem jantar duas ou tres familias.» E pergunto-me ainda se não terá  ele também visitado a «village nègre», considerada uma uma das atrações «científicas!!» mais populares da Exposição, um dito «Zoo humano» onde eram exibidos 400 indígenas trazidos das colónias francesas. 
Que mais interessou Ramalho na Exposição?
Os congressos!
Vários. Todos eles dando a conhecer e discutindo o que de mais notável se fazia no mundo nos mais variados domínios: meteorologia, matemática, indústria, engenharia, hygiene, medicina, sciencias e etc etc. O pormenor do relato faz crer que Ramalho Ortigão não perdeu pitada. Culto, inteligente, curioso, toca em todos esses domínios, sempre com o mesmo interesse e rigor. De tantos congressos, porém, «nenhum parecia destinado a attrahir tão especialmente a attenção do publico como o congresso das mulheres.». Isto diz Ramalho e, não sei porquê, tenho para mim que talvez também a ele lhe tenha merecido um interesse particular, ao ponto de lhe reservar um capítulo especial nas suas «Notas de Viagem».
Mas não gostou. 
As mulheres reunidas nesse congresso, afinal dedicavam-se a discutir as discriminações com que a lei tratava as mulheres, exigindo que «as medidas policiaes com relação á mulher se limitem a fazer respeitar a ordem publica sem distincção de sexos» e coisas deste teor. E Ramalho não gostou. Não gostou porque «querer fazer da mulher o ente mais igual ao homem, como estas senhoras declamaram em todas as suas reuniões, é cahir no maior dos erros emquanto á comprehensão do destino feminino. A alliança conjugal baseia-se precisamente no principio das dissimilhanças. A mulher é precisa, é indispensavel, é essencial ao homem exactamente pela razão de que é mais fraca do que elle. É da sua fraqueza que a mulher tira o immenso poder que contrabalança toda a nossa força e que torna a esposa o complemento de nós mesmos, a nossa companheira, a nossa igual.»
«Dêm-lhe ao mesmo tempo a abolição de todas as penas que nos nossos codigos ferem a violação dos deveres da filha, da esposa e da mãi, e todas as grandes qualidades que distinguem a mulher e fazem d’ella a metade integrante da humanidade se atrophiarão successivamente até cessarem para sempre de funccionar. A mulher então será livre – livre para não prestar para nada.»

Ramalho Ortigão, zangado com as senhoras do Congresso das Mulheres, é peremptório: «A grande, a elevada, a importante funcção da mulher na sociedade humana não é ser telegraphista, ser boticaria, ser jornalista ou ser doutora; é ser mãe e é ser esposa.»

Estou convencídissimo de que não há de faltar por aí gente em barda a concordar com a ramalhal invectiva. «A mulher é em casa que se quer», abona o país onde até a violência, quando doméstica, goza de uma esfera de impunidade onde não é bem aceite que a Justiça meta a colher. O que a Justiça, aliás, de bom grado repete nos seus acórdãos, sempre que lhe dão azo para tal. 

O chiste, a verve, o fino recorte literário da ramalhal prosa valem um seguro aval a esta sua declaração da quintessência do feminino. 
Mas… (lá tinha de vir o mas) isso só para uso interno, claro, um interno feminino, digamos assim. Porque para uso externo já a conversa é outra, e é outro o externo feminino. É que sempre há de vir de lá algum que logo retruca-truca: mas, vamos lá a ver, se todas elas são mães e esposas como é que…?
E também para isso nos chega a pronta resposta de Pariz e do muito nosso Ortigão: «Pariz produz igualmente a cocotte. A cocotte é uma das molas mais poderosas da civilisação e do progresso. (…)  A immensa multidão das pequenas cousas inventadas para tornarem a vida mais doce, mais facil, mais espirituosa, mais subtil, mais delicada, mais digna, não existiria no mundo se desde a antiga Grecia, a mãe das artes, até o moderno boulevard de Pariz, não tivesse existido a cocotte..»

E é assim que a cocotte (e acho que não é preciso traduzir) salva a família, o casamento, a tranquilidade e «o amor sublime d’esses entes sobrehumanos que fazem consistir toda a sua aspiração, toda a sua honra, toda a sua gloria, em serem unica e exclusivamente na terra as mães de bons filhos.»

Pode ser que já não exista o Pariz de que nos falam as “Notas de Viagem” do bom do Ramalho Ortigão, ele próprio já só lembrado em vagas referências nas sacristias e nos acórdãos judiciais. Mas se isso se foi, ficou o relento bafiento da surda violência dessas máximas disfarçadas de bom senso. Bom senso esse de que já Ortigão nos dava a sua ramalhal definição: «o pariziense, que é o bom senso encarnado, não admitte em geral senão duas especies de amor: o amor honesto, legalisado na dignidade tranquilla e fecunda da familia, ou o amor absolutamente livre, de caracter arbitrario, temperado com a porção de desdem indispensavel ás garantias da liberdade, na tolerancia anarchica da cocotte.»

Ai de mim, que começo pelos temas sérios e conceituados da Exposição Universal de Paris de 1878, que nos trouxe os primeiros passos da proteção das propriedade literária, da adoção generalizada do alfabeto Braille e numerosas invenções úteis de que ainda hoje nos servimos, para descambar depois por esses boulevards abaixo e acabar a falar das cocottes que tanto entusiasmaram o Ramalho… Para não ficar com a vergonha toda, deixo aqui a fechar a página a photo do Pavilhão Português na Exposição. A ver se com isso me redimo.

 

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