Costuma dizer-se que o acaso faz bem as coisas. Nem sempre assim será, mas desta vez, por acaso é verdade. Foi por acaso que conheci a poesia de Manuela Nogueira, que daqui a pouco lhes irei apresentar. Mas primeiro vamos ao tal acaso, que se deu quando encontrei um amigo meu muito chateado porque tinha de ir fazer uma entrevista para uma revista e à última hora tinham-lhe sonegado o fotógrafo. E foi então que eu, arrastado pelo empurrão do acaso (lá está!) me ofereci para o acompanhar e fazer as vezes do gazeteiro. Sobra-me em atrevimento o que me falta em juízo, como não deixaria de dizer, se ali estivesse, o Jean Némar, meu amigo e confessor, que é o estribilho usual dele quando me vê atirar-me da prancha de cabeça sem saber nadar. É capaz de ter razão, mas a verdade é que daí a pouco lá ia eu com esse meu amigo a caminho do Estoril e da tal entrevista.
E a entrevistada era precisamente a já nomeada Manuela Nogueira, que eu não conhecia e de quem até então nunca ouvira falar. Conversa daqui, conversa dali, fui tirando umas fotografias ora daqui ora dali e eles lá entraram na matéria da entrevista.
A despropósito, mas para que se veja a caloirice do fotógrafo improvisado, explicaram-me depois que é de regra nos jornais nunca incluir o entrevistador nas fotografias, o que eu não respeitei na maior parte das que tirei. E que agora servem só para arquivo do meu atrevimento.
Enquanto falavam, cumprida a minha parte da missão, pus-me a deambular pela casa e a admirar as muitas coisas que por lá havia para admirar. De vez em quando chegavam-me em fundo as palavras deles e ainda mais de vez em quando umas risadinhas breves, frescas, de menina. Menina essa, diga-se já, que andaria pelos seus noventa e muitos anos. Irresistíveis, também, aquelas risadas. E contagiantes. Estou convencido de que era para poder ouvir esse riso tão límpido e alegre que o tio dela, o poeta Fernando Pessoa, se punha a fazer palhaçadas, enquanto ela o observava da janela, fingindo-se de distraído e indo de encontro aos candeeiros da rua. Aliás, é essa memória enternecida que ela guarda desse tio brincalhão e bem disposto. E que ela perpetua nessa casa onde agora mora.
Em tudo quanto é parede, mesa, móvel, repete-se quase em exclusivo a presença de Fernando Pessoa, declinado em fotografias, desenhos, pinturas, bonecos, caricaturas, e até estampados de tecidos. O que é mais engraçado é que, ao vaguear por este emaranhado de recordações e testemunhos, nada me cheirava a museu ou fixação maníaca de colecionador. Porque de algum modo tudo parece emanar qualquer coisa de pessoal, de enternecido, de familiar. E é o que é, ao fim e ao cabo.
Neste divagar, deu-me para pegar num livro que, esse, era da autoria dela, da entrevistada. E pus-me a lê-lo. E gostei. Tanto que lhe pedi autorização para mandar alguns desses poemas para a DiVersos, uma revistinha de poesia onde às vezes colaboro com traduções de poetas do meu gosto. (Ainda aqui há de ser chamada a revista e o trabalho de paciência e dedicação do seu editor, José Carlos Marques. Fica aqui a promessa.)
Não só me autorizou como me ofereceu um exemplar do livro, Rosas e Dinamite. Por meu lado, mandei então alguns poemas do livro, depois publicados na revista. Foram acompanhados por uma breve apresentação que então escrevi naquele estilo supostamente neutro e com o seu quê de presumido próprio de quem fala sobre o que não sabe. Mas que aqui segue, apesar de tudo:
«Em Rosas e Dinamite somos surpreendidos por uma poesia onde as palavras se depuram de emoções e sentimentos, se decantam até ao mais essencial, aos “cacos da vida” – as palavras como coisas, mudas, que valem apenas pelo seu uso ou a sua beleza, como se diz num destes poemas. É um livro que pode ser lido como uma viagem, a busca de uma verdade irredutível. Que é também uma viagem de regresso, que refaz os passos de uma memória, agora despojada do que nela havia de “grinaldas de papel colorido, de efabulação”, e que mais valia fossem “um saco de feijão que se pudesse demolhar e guisar”, como se diz na sugestiva imagem do poema “Na arca da memória”. É uma poesia para nómadas, esses que antes de partirem para a longa viagem se desfazem de tudo o que possam ter de dispensável ou inútil.»
E, já agora, como prometido, aqui vão três dessas poesias, a aguçar o apetite ou a curiosidade.
Paciência eterna
Não me convidem para conversar.
Só ouço os sons e não o sentido.
Porque o destino das palavras é trocarem
sempre o verdadeiro Destino.
Desde séculos mudam-se como cartas
numa paciência monótona e eterna.
Por mais que mudem, nunca dizem
o que apenas desejam esconder.
E assim as coisas são mais verdade.
Por serem só úteis, inúteis ou belas.
Na arca da memória
Na arca da memória tanta efabulação,
tantas grinaldas de papel colorido,
sonhos sem pés prontos a caminhar,
flores secas em livros sempre por abrir.
Na arca da memória tanta efabulação,
como mentiras em caixas de vidro:
rostos, gestos vagos, imprecisos,
cenas de angústia ou crises de riso.
Na arca da memória tanta efabulação,
guardada num tesouro de frágil cristal,
dele me alimento, por ele bate o coração;
e nela, na arca, nada se guarda de real.
Se ao menos tivesse guardado um saco de feijão…
e demolhado crescesse e guisado merecesse
o esforço de quem displicentemente o semeou…
Mas não. Na cerebral, insólita circunvalação,
um comboio caminha por trilhos a desvendar
nenhuma estação é para esquecer ou parar.
Só talvez na morte o terminus da razão.
Peregrinamos o mundo em caravanas
Numa húmida e fria madrugada
que cortou o decorrer do Verão
tive a profunda e verdadeira noção
da diminuta exiguidade da vida.
“O tempo antecedera-se ao calendário”
– Os sonhos bem os via ruir –
mas peguei nos cacos da vida
e tudo o mais necessário
preparando-me para fugir.
Reparei então que havia outros parceiros
nómadas, como eu, das leis humanas;
com eles, os desiludidos meus companheiros,
peregrinamos o mundo em caravanas.

Muito interessante a tua história. Os poemas são belíssimos.
Um abraço, Marinho
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A prop de Pessoa, a qui vaig seguir molt. Gràcies, Zè.
He tingut algun problema amb paraules que es superposen, tant en portuguès com en la traducció al català. Res greu.
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Gostei muito.
Também gostei dos poemas que selecionaste.
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