Os chamados jogos de salão são o passatempo ideal para as pessoas que não têm muito mais que fazer e que às tantas são apanhadas desprevenidas sem televisão ou sem telemóvel ou sem outras distrações do género. A lembrar serões na província, entre primos, entre amigos acampados, uma maneira de passar o tempo que todos acabam por achar divertida depois de a terem rebaixado como coisa de outras eras. É sempre assim e sempre assim foi, desde que o mundo é mundo ou pelo menos desde há quatro mil anos desde que foram inventados no Egipto ou na Mesopotâmia. Um dos jogos mais populares, no meu tempo, era um a que chamávamos «das histórias». O desafio era inventarmos uma história, usando os elementos que nos eram fornecidos. Pegava-se num baralho especial que se dispunha em três montinhos: havia o montinho das personagens, havia o dos locais e havia um terceiro dos adereços. A inspiração viria talvez dos contos de fadas porque as personagens eram sempre reis e rainhas, e príncipes e feiticeiras e ladrões e outros da mesma laia. Os locais tanto podiam ser castelos como choupanas, grutas, montanhas aldeias… Os adereços eram a condizer: ceptros, cordas (de enforcar!), varinhas mágicas e quejandos. Hoje, poderíamos sem risco atualizar isso tudo – o resultado final seria o mesmo. E o resultado, a conclusão, a que chegávamos invariavelmente, era que todas as imaginações convocadas, cruzando de mil maneiras que fosse todos aqueles variados elementos acabavam por nunca desaguar muito longe do que víamos ou líamos em tudo quanto há de livros e revistas, filmes, telenovelas, lendas e até na vida real.
Há quem diga que, no que toca à imaginação e às histórias, nada há de novo desde a mitologia grega e os mitos bíblicos. Isto na frente ocidental; no Oriente, em África, nesses mundo que não habitamos se calhar a conversa é outra. Mas aqui é assim, realmente. É lá que tudo vai dar. E a literatura afinal não foge à regra: mais ou menos mastigado, tudo vai dar a esse ventre original onde as primeiras histórias foram paridas.
Se bem que para cada um de nós há (houve) sempre uma primeira vez. O que hoje é repetição, foi já ontem a revelação maravilhosa, o encanto da surpresa. E que hoje se calhar buscamos ainda em cada história. Na aldeia da minha infância, onde não havia livros, havia um homem que trazia a criançada colada a ele sempre com a promessa (nunca cumprida!) de nos ler a história do João Soldado. Não sei sequer se ele tinha realmente tal livro, ou sequer se saberia ler, mas bastava a promessa, tal era a nossa sede de maravilhas. E de histórias. E é esse seguramente o anzol mais eficaz ainda hoje, e pela vida fora, que nos leva a pegar num livro ou a ver um filme. Uma história bem contada, aí está o segredo que nos faz sair de nós.
Quando começamos a ler, depois de nos livrarmos dos embaraços do b-a-bá, tudo é novo, tudo é uma revelação. E devoramos livros, que para nós são acima de tudo histórias. E que virão a ser o mundo comum que todos herdámos – feitos de uma massa cada vez mais indeterminada onde, se fôssemos a ver (mas não vamos), haveríamos de reconhecer restos dos irmãos Grimm, do Emílio Salgari, das aventuras dos cinco, das coleções que regularmente se vão editando com os melhores contos de, ou as melhores histórias de. Lembro-me que li de enfiada com o mesmo assombro com que ouviria a verdade revelada todos os livros do Júlio Verne e de um autor tremendo de histórias tremendas de quem hoje ainda sei o nome (Hall Caine), ainda que nada mais saiba. Até que um dia…
Até que um dia chegou à aldeia a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian – umas carrinhas Citroën armadas de estantes carregadinhas de livros que podíamos levar para casa e ler. E de graça. Foi uma fartura! Devo ter apanhado aí a minha primeira indigestão de neo-realismo, de que ainda hoje padeço as sequelas. Tudo servia, ia tudo raso. E os bibliotecários ajudavam à missa: lá iam detetando os nossos gostos e depois orientando as leituras. Era muito capaz de entre eles andar o Luís Pacheco, que anos depois, muitos anos depois, percebi que por essa altura devia andar a sacar o seu nas bibliotecas e precisamente a passear o seu esplendor por essa aldeias de Braga, a idólatra. Fosse ele ou não fosse, a verdade é que no meio desta fartura de histórias – e quando começava já talvez a pressentir-lhes os vezos, as manhas e as saídas, as voltas e reviravoltas que por variadas que sejam não conseguem esconder-nos que a música é a mesma – houve um deles que me meteu nas mãos um livro com a recomendação «lê este e diz-me depois o que achaste». E foi um abanão. Foi a maneira como a meus olhos começou a nascer a ideia de que mais do que a história havia o modo como a história era contada. Que se calhar é a melhor maneira de se explicar a alguém o que a literatura vem a ser no fundo. O livro era o «Rumor Branco», de Almeida Faria. Não é certamente, digo-o hoje, o melhor livro dele, mas para alguém nascido numa aldeia sem livros, nem nada do que lhes anda associado, foi o vislumbrar de um mundo onde até aí, foi o que senti, nunca tinha posto o pé.
Há que o dizer, porém: perceber que há nos livros um mundo que existe para além daquilo a que chamamos o enredo, ou a intriga, nada tira ao prazer de ler uma história bem contada, seja um bom policial, seja um livro de aventuras. Li ao meu filho o Harry Potter quase todo, as Crónicas de Narnia, as Aventuras dos Cinco, alguns pela primeira vez, quase com o mesmo fascínio com que ele as ouvia.
E sabem o que ando agora a ler? Aliás, a reler pela terceira ou quarta vez? A maravilhosa maravilha de um livro quase sem história, ou que a ter história é coisa que se conta já em poucas palavras: um homem muito muito rico, vive em Paris, rodeado de todos os confortos e satisfações que a fortuna e a civilização podem proporcionar. Que, depois de um certo encanto inicial, tudo é para ele tédio, tédio, e «uma maçada», como ele diz. E que às tantas, empurrado por um motivo inesperado, tem de se deslocar por uns tempos às terras rudes de Portugal, de onde lhe vinham os antepassados e a fortuna. E que se surpreende ao deparar com um mundo mais autêntico, esse mundo rústico e quase primitivo bem diferente da sumptuosidade e do fastio dos salões de Paris. É só isso, no fundo, a história daquela personagem. Acontece é que, compreendemo-lo finalmente, a personagem principal do livro, se assim podemos dizer, é antes a língua portuguesa, é essa maneira maravilhosa de usar uma história, por mais banal que seja, para despertar um mundo que existe em nós, ignorado ou adormecido, e que só por obra dessas palavras mágicas pudesse vir à tona. Isso a que, à falta de melhor palavra, chamamos às vezes poesia, às vezes literatura. O Jean Némar, rapaz dado a estas coisas, é que costuma dizer, com uma verve que eu lhe invejo, que a diferença entre um (bom) contador de histórias e um (bom) escritor é como a que existe entre os movimentos de uma ginasta e os de uma bailarina. Se numa vemos o rigor, a forma como tudo se coordena, se constrói, se organiza para o efeito final, antecipadamente anunciado; é na bailarina que descobrimos a graça, a leveza, e como tudo nos arrasta para uma dimensão em que, mais do que ver, adivinhamos o que está para além do que vemos e que sentimos despertar em nós, sem que soubéssemos sequer que aí existia. E que livro é esse, afinal? perguntarão os que ainda não adivinharam. O livro chama-se «A Cidade e as Serras» e o autor Eça de Queirós.
Gostei muito!
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Muito bom. Vou mandar ao Almeida Faria, já que não posso enviar ao Eça de Queiroz…
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´Tá b
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Escreves muito bem! Irene C. Marques
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