tréguas tribais

Para onde quer que eu vá, os meus passeios com o cão acabam quase inevitavelmente por me levar até ao grande muro que circunda o quartel. Sou um leitor compulsivo e atento das mensagens que ali se vão sucedendo, umas vezes sobrepondo-se às que lá estavam, outras infestando-as com os mais variados riscos e rabiscos. Murais feitos com todos os cuidados são torpedeados com todo o tipo de àpartes, a escorrer tinta e ironia, ou raiva, às tantas. A uma esmerada composição de feministas a jurar «sororiedade» (sic) às 3 Marias, no fraseado elaborado da pieguice bem-pensante do momento, e logo desfeiteada por um «tem juízo» numa garatuja alarve, segue-se um outro mural com slogans de apoio à «Palestina Livre», enxertado de intervenções que desfiguram as imagens das, supõe-se, mulheres palestinianas aí representadas. Ao fim de algum tempo (e já ali está há algum tempo), o mural fica salpicado de rabiscos atabalhoados. Como glosas intercaladas num texto alheio, alguém tentou desfazer o que está dito (e atira com «Terroristas!», que depois será riscado por cima a tinta diferente), enquanto outros deixam o seu apoio à Palestina (e ao Hamas!). No meio disto tudo, ainda sobra espaço para achincalhar o mandão do Miguel, mas recorrendo ao dialeto agora tão em uso entre nós («Miguel, calma, you are so bossy!»).

Fazem-me lembrar, estas trocas públicas de denúncias, de apelos, de insultos, os antigos dazibaos dos maoistas chineses. Não sei se alguém ainda se lembrará: aqueles cartazes pintados ou escritos à mão que infestavam os muros das cidades e das universidades chinesas durante a chamada Grande Revolução Cultural Proletária. Representavam, na opinião dos que detinham o Poder, a opinião pública, livre e sem intermediários, e eram em grande parte o pontapé de saída para as vastas purgas que então se sucediam, com denúncias da atuação «contra-revolucionária», da incompetência ou da corrupção de funcionários locais. Anónimas, sempre. 
Diga-se também que o tosquiador acabou em boa parte por sair tosquiado: os dazibao que então foram consagrados como um direito garantido pela constituição de 1975 começaram, com o virar dos tempos, a ser usados como meio de expressão do movimento por reformas políticas e económicas. Depressa se desfez o que depressa se fizera: os dazibaos são probidos e é abafado o movimento que veio a encontar o seu fim sangrento no massacre da Praça de Tiananmen em 1989.


Claro que nestes dazibaos da Graça, em Lisboa, não há sequer uma sombra disso. Nem estes ataques e denúncias são causa de destituições, prisões ou desterros de quem quer que seja. Lembrei-me disso só pelo que aqui há de confronto espontâneo de opiniões (que não é o mesmo que confronto de ideias, há de notar-se). Ninguém pedirá policiamento ou limites para expediente tão espontâneo e livre, pelo menos enquanto se ficar por aí, pelas opiniões.
Mas não é isso que me leva a falar nos murais da Graça. 
É que o painel que se segue no muro está ali há muito mais tempo do que estes de que falei. E até já apareceu por este blogue há uns tempos. (Para os que chegaram atrasados, pode-se ver, clicando neste link: https://wordpress.com/post/zelima388727646.wordpress.com/227). Aqui o que se regista, mesmo que involuntariamente, é a contenda surda que se estabeleceu entre duas tribos vizinhas: os da «Resiliência» e os da «Resistência». Quem aí primeiro se instalou foi a Resiliência e, como quem assenta um padrão a assinalar a propriedade de terras estranhas, assinalou o facto com um mural feito com todas as regras da arte, com todos os efes e erres. Mas não é que em poucos dias (ou noites) alguém lhes pôr um travão? Os da Resistência, sejam eles quem forem, vieram pôr os pontos nos is, ou antes o ésse e o tê, que logo muda toda conversa e o entendimento a dar à intervenção. Ainda houve mais uma pequena escaramuça – em que se apagaram e se reescreveram as duas letrinhas teimosas. Mas depois mais nada. Foram-se passando os meses (muitos) e nada. Os murais ao lado vão mudando, vão sendo enxovalhados ou vitoriados, e este aqui: nada. Porquê, não faço ideia. Será assim em obediência a alguma regra, que ignoro, do Código não-escrito dos escrevedores de paredes? Alguém me saberá explicar? Que isto dá que pensar, dá. Pelo menos a quem vagueia por aqui sem nada mais que o ocupe do que estes pequenos nadas de que se alimenta o diário do bairro.

3 thoughts on “tréguas tribais

  1. Um texto muito longo, para repetir que o “maduro” está verde, que os russos são maus, que o rio Jordão corre para o Mar Morto, ou que uns tipos têm uma tampinha na cabeça para não perder

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