mira mira não me toques

Deram-me ontem um vasinho com uma flor. Não estava nada à espera. Embora andasse há muito tempo a namorá-la. Nos meus passeios com o cão passo quase todos os dias por ali – uma escolinha separada da rua por um gradeamento que tem uma espécie de parapeito onde se alinham uns quantos vasos variados. O costume: plantas para todas as estações, desabituadas de mimos e finezas, que resistem a tudo. A tudo menos a passantes cobiçosos, como vou contar. Sardinheiras, cactos ou coisa que o valha, aspidistras, espadas de são jorge, e às vezes alguma surpresa menos habitual. Era o caso: um vasinho com a tal planta de que me agradei, uma coroa de picos eriçados a guardarem umas florzinhas de um vermelho incandescente como nunca vi outro. Não teria a lata de cortar um rebento para mim, claro, mas fiquei de olho nela, à espera de ver alguém a quem o pudesse pedir. Daí a tempos, a plantinha desapareceu. Alguém menos paciente tinha tentado roubá-la. Só os picos, talvez, mas sobretudo a grade estreita tinha travado a mão larápia. Isso disse-me uma senhora Celina com quem finalmente cheguei à fala. Trabalha na cozinha da escola e vai dispensando alguns cuidados às plantas. Deu pela tentativa criminosa e tratou de esconder o vaso dos olhares cobiçosos. Mas prometeu-me que quando chegasse o tempo frio, mais próprio para estes transplantes, me daria um pé de mira-mira-não-me-toques, que assim se chama a planta, disse-me ela. O Professor Google, consultado por mim, confirmou: é esse um dos nomes que dão a esta Euphorbia milii. Mas também: dois-irmãos, bem-casados, duas-amigas ou dois-amigos (por as flores aparecerem normalmente aos pares), ou então não-me-toques, coroa-de-espinhos, coroa-de-cristo ou martírios (logo se percebe porquê, basta olhar para os picos). Menos ingénuo, o nome científico tem uma origem mais mundana: vem-lhe do barão Pierre-Bernard Milius, governador da atual Ilha Reunião, que trouxe de lá algumas destas plantas para o Jardim Botânico de Bordéus em 1821. Vá-se lá ver as voltas que o mundo dá…
Mas, o que eu estava a contar: ia eu ontem a passar na escolinha e chamou-me a Senhora Celina. Tinha preparado um vasinho com um pé de mira-mira para me dar. E já cá está, ao pé das outras flores que com o passar do tempo tenho trazido para casa dos meus passeios pelos baldios e terrenos vagos para onde o cão me arrasta. Flores silvestres que não sei como invadem o mais ínfimo pedacinho de terra que haja à mostra no meio do betão e da calçada. Coisa linda de se ver, diga-se, para os olhos dos camponeses exilados que bem vistas as coisas todos nós somos. Foi assim que aos poucos fui enfiando nos vasos do terraço inteiras campinas de outros sítios: papoilas, ainda que pouco dadas a emigrações forçadas, e que por isso se recusam muitas vezes a pegar; pampilhos, sempre todos lampeiros a instalar-se aonde quer que os levem; e capuchinhas, e tomilho, e o que mais calhar. Até – das minhas preferidas – soagens. Trouxe este ano algumas, embora só um pezinho se tenha resignado ao degredo, sempre com um ar um pouco contrafeito, como um estorninho perdido do bando, habituado que está às planuras por onde a soagem alastra em extensões compactas. É feito de soagens, o manto púrpura que na primavera cobre as campinas por esse Alentejo fora. O meu terraço não é já se sabe a planície alentejana, mas sempre me serve de lembrança desse deslumbramento, e com isso me absolve de assim a ter roubado à companhia das suas iguais.

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