encaminhados ao solo

É amanhã o julgamento dos ativistas climáticos implicados na manifestação de 24 de novembro diante do Ministério do Ambiente. Um deles é o João.
Não posso dizer que não estou preocupado. Estou, mas não muito, devo dizer. Era capaz de estar mais preocupado se ele fosse de todo indiferente às questões que ali o levaram. Se um tipo aos 17 anos, que é quantos ele tem, não pensar que pode mudar o mundo e que quer mudar o mundo, isso significaria que se dá por vencido ainda antes de o mundo lhe cair em cima. E nunca mais terá nenhuns dezassete anos que possa merecer.
Agora vão a julgamento, acusados de serem “autores, na forma consumada, de um crime de desobediência punido pelo Código Penal”. Foram ainda acusados de violência contra agentes da polícia, mas na fase preliminar concluiu-se que “resulta clara a insuficiência de indícios que permitam concluir pela verificação do crime de ofensa à integridade física”. As testemunhas (dos polícias) “não conseguiram identificar os agentes visados e ofendidos pela suposta violência, nem concretizar quais as zonas do corpo dos agentes ofendidos ou qual a concreta atuação perpetrada por cada arguido em concreto”. Também basta olhar para o arguido João e comparar com o cabedal dos polícias que o prenderam para ver que.
Da parte da polícia, diz o auto de notícia da PSP, os manifestantes “apenas foram agarrados e encaminhados ao solo, tendo o suspeito João Lima sofrido umas ligeiras escoriações na mão e joelhos resultado do encaminhamento ao solo e da resistência que o mesmo efectuou contra a detenção.” Apenas isso…

Estive na manifestação. Ainda no Largo de Camões, ponto de partida, fui falar com um grupo de polícias que lá estava a controlar a situação, para lhes perguntar o que tinham previsto e planeado. Uma agente disse-me que não devia haver problemas de nenhuma espécie, a manifestação era pacífica e estava autorizada. Quando arrancámos, tinha a meu lado uma senhora com um carrinho de bebé, que ela certamente não pensava atiçar contra os agentes da Ordem. Para que se saiba: o carrinho levava realmente um bebé (não se vá pensar que servia para esconder quaisquer granadas ou bombas de terroristas facinorosos). Eu ia acompanhado pelo meu fiel Chip, um podenguito respeitável, mas também respeitador (não se vá pensar que era algum mastim de dentuça afiada, treinado para atacar as forças da ordem. Não é). Dali ao Ministério do Ambiente são umas centenas de metros. Não vi ninguém com facas ou pistolas, nem pedras, nem paus, nem outras armas de arremesso. Alguns manifestantes levavam disfarçadamente uns tubos que pensavam usar para se algemarem contra a porta do Ministério e assim fazerem um protesto simbólico e visível. Como? Enfiam os braços dentro do tubo, impedindo desse modo que os prendam um a um; isso só seria possível serrando os tubos, o que é também uma manobra arriscada mesmo para polícias, se não quiserem causar ferimentos graves. Dois ou três polícias à paisana (espero que se tenham identificado, mas não vi nada disso) interpelaram e revistaram alguns manifestantes e apreenderam um cartão navegante, um telemóvel, vários produtos de higiene, uma tarja com os dizeres “Nosso futuro acima do lucro fácil?” e algumas outras perigosas armas similares. O problema veio depois, ao virar para a Rua do Século onde se situa o Ministério: tínhamos à espera uma barreira dupla de polícia de choque, com todo o equipamento anti-motim, capacetes, bastões, escudos e um ar bastante mal encarado. Percebia-se que aquilo era bem mais do que o necessário para um “dispositivo policial ajustado, de forma a garantir a proteção do direito de reunião, liberdades e garantias de quem se manifesta”, como disse há dias a PSP a propósito de uma outra manifestação (a dos simpatizantes do partido Chega diante da CML). Decidi passar ao lado da barreira. O meu canito, os meus (já poucos) cabelos brancos e o meu aspeto visivelmente bastante pós-adolescente devem ter convencido os polícias de que eu era um morador da zona transviado no meio da confusão. Deixaram-me passar. Do lado de lá (junto ao Ministério, onde a manifestação afinal não chegou) deparei com um aparato policial que estava longe de imaginar quando saímos do Largo de Camões: várias carrinhas, polícia de intervenção, UEP, GOE (Grupo de Operações Especiais), além de carros para levar os detidos. Intimidante. Feitas as contas, havia provavelmente mais polícias do que manifestantes, que não deviam ir além de 40 ou 50. No meio disto tudo, aproxima-se de mim a agente da PSP com quem eu tinha falado no Largo de Camões: vinha-me pedir desculpa por me ter dado uma informação errada, também ela não fazia ideia do que ali nos esperava. Que havia eu de dizer? Depois vi chegar os três detidos, algemados, com as escoriações resultantes de terem sido “encaminhados ao solo” (!!!), conduzidos com toda a ternura de que são capazes aqueles latagões, mesmo com os movimentos embaraçados por todo o arsenal que trazem em cima do coiro. Tentei informar-me de qual a esquadra para onde os levavam. “Saia mas é daqui, se não quer ir também!”, foi a resposta do polícia de choque, provavelmente usando o jargão consagrado na corporação para falar com os civis circunstantes.
E foi assim. Seguiu-se a detenção na esquadra, o interrogatório, os autos e essas coisas já da intimidade das esquadras e tribunais. E amanhã é o julgamento. Espero que não demore muito, até porque amanhã é o dia do João fazer o jantar. E não escapa à faxina, lá por ter sido vítima de “encaminhamento ao solo” (como diz a polícia no seu singelo linguajar, para não dizer brutalidades como “atirado ao chão”…). Temos uma polícia civilizada, como se vê.

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