Columbina Clandestina

Vem aí o Carnaval, vem aí a Columbina. Ainda há pouco não sabia o que era. Agora sem dar por isso vejo-me à espera que ela passe, essa vassourada de folia desenfreada que corre o bairro na terça-feira de Carnaval. Coube aos brasileiros daqui, se calhar levados pelas saudades da desbunda carioca, dar o pontapé de saída. E de há uns anos para cá nessa tarde vemos desembocar de uma ponta à outra da Rua da Graça até ao Largo, à volta do coreto, uma maré colorida de pessoas mais ou menos fantasiadas e maquilhadas, umas com mais roupas do que outras, a dançar e a cantar, ao som de bombos, tambores, pandeiros e tudo o que possa servir para marcar o ritmo desta animação toda. Nada a ver com o entrudo português – bisonho, com as suas figuras “tradicionais” codificadas para todo o sempre, com indisfarçáveis relentos machistas. Também nada a ver com os “desfiles carnavalescos” que as Câmaras patrocinam em algumas cidades – bem organizados, arrumadinhos, com uns arremedos de crítica social e política e “carros alegóricos” as mais das vezes a maldisfarçar os intuitos publicitários de quem os paga.
A Columbina é o oposto de tudo isso: estouvada, desorganizada, contagiante, aberta a quem queira despir-se das aparências de todos os dias e a desafiar convenções e estereótipos.

Vi ontem no jornal que também noutros bairros da cidade fazem festas semelhantes, também animadas (sobretudo) pelos brasileiros que cá vivem, também com nomes engraçados e inventivos, também espontâneos e abertos a todos os farristas. Mas parece que este ano há algumas diferenças. Para começar, até a Columbina é já menos clandestina, com direito a cartaz anunciador e tudo. E já a denunciar os primeiros sinais de quem começa a “levar-se a sério”. Em parte porque ao que parece “as autoridades” (a PSP e a Câmara) começaram também a levá-los a sério. O que antes era visto como uma “manifestação” espontânea, que apenas precisava de fazer um pedido de manifestação e anunciar o dia e a hora, é agora classificado como um “evento cultural”, o que exige pedido de licenciamento, pagamento de corte de rua, de patrulhamento, de seguros contra acidentes pessoais, de taxas camarárias… Enfim, uma catrefada de obrigações que levou estes grupos a “cair na real”. Alguns já desistiram. A Columbina Clandestina não (ou ainda não). Cá estará na terça de Carnaval a querer fazer-nos acreditar que as cinzas e o cinzento ainda vêm longe. E há sempre quem acredite ou queira acreditar. Até eu, que não sou nada dado a folias (mas que gosto de ver as pessoas a foliar).

Daqui a alguns domingos teremos aqui outro cortejo: a procissão do Senhor dos Passos. Bastante menos garrido, porém. Muito mais organizado, sob a batuta com séculos de experiência (desde 1586!) da Real Irmandade de Santa Cruz e Passos da Graça, com lugares cativos das autoridades cívicas e religiosas, que aí desfilam compenetradas e todas garbosas, com a inesperada presença dos Cavaleiros da Ordem de Malta, que nem sabia que ainda por cá andavam, ao som da música, séria, lamentosa, soturna de uma banda vinda (por razões que me escapam) de Cascais, acompanhando a imagem sofredora e algo tétrica de um Cristo agonizante carregado pelos membros das confrarias atinentes a deitarem os bofes pela boca fora, e por um séquito de fiéis igualmente arfantes, alguns descalços (por promessa), numa marcha funérea através das colinas de Lisboa, desde São Roque até à Graça.
Será que lá no meio não irá alguma columbina desgarrada a penitenciar-se dos pecados da terça-feira gorda?

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