Justos entre as nações

Dizem-me que há em Jerusalém um jardim onde plantaram mais de duas mil árvores a que foi dado o nome de «Jardim dos Justos entre as Nações». Cada árvore tem o nome de uma das muitas pessoas que durante a guerra na Europa prestaram ajuda aos judeus perseguidos pelos nazis. Todos esses que com isso puseram em risco as suas próprias vidas, salvaram ao mesmo tempo muitas mais. Nenhum deles era judeu; mas todos eles achavam que os judeus eram seres humanos que cabiam na sua quota de responsabilidade enquanto seres humanos. Os gestos destas pessoas ofereciam um contraste flagrante no meio da corrente de indiferença e de antissemitismo que prevalecia entre as populações europeias durante o Holocausto.

Depois da guerra, agora senhores de um país a que podiam chamar seu, os perseguidos de ontem quiseram com este jardim homenagear estes protetores desinteressados e a coragem daqueles que se mostraram sensíveis ao sofrimento de um povo indefeso.

Muito tempo passou entretanto. O suficiente pelo menos para que muito disto vá caindo num morno esquecimento. Hoje, contam-se pelos dedos os sobreviventes do Holocausto. E muita coisa mudou também em Israel: é hoje um país poderoso, dotado de um exércido dos mais poderosos do mundo, armado pela maior potência do mundo. As sucessivas vagas dos judeus recém-chegados, sobretudo depois do fim do império soviético, trazem consigo outras memórias, a dos pogroms estalinistas e das perseguições antissemitas nesses países. O Holocausto tornou-se em grande parte uma memória que vive nos livros da escola e no museu do Holocausto de Jerusalém. As árvores do Jardim dos Justos lá estão ainda. Será que também a memória que evocam viverá também?

Hoje, quando vemos o exército de Israel perseguir, esmagar, massacrar, exterminar sistematicamente um povo inteiro, não será a hora de perguntarmos também: Onde estão os Justos de Israel?

Hão de responder-nos (muitos) que esse é o preço necessário a pagar pelo resgate das vidas inocentes detidas pelos fanáticos do Hamas, que dominam o território de Gaza e usam as populações inocentes (se é que há inocentes, dirão também) como arma e escudo. Mas, mesmo assim, poderemos perguntar ainda: E que justificação haverá então para os crimes que o exército de Israel comete diariamente, metodicamente, nas terras ocupadas da Cisjordânia (não em Gaza) onde o Hamas não domina? Que há de justificar então a perseguição organizada, os controlos de pessoas e de movimentos, a destruição de tantas oliveiras e das culturas dos camponeses, a demolição de casas e a expulsão forçada das pessoas que aí vivem? Estes castigos coletivos não fazem lembrar nada a quem alguma vez ouviu as histórias do gueto de Varsóvia? 

Sei que há outras vozes (poucas) que em Israel se ouvem a assumir a sua quota de responsabilidade enquanto seres humanos, acima do ódio nacionalista (e até racista) que é o que mais se faz ouvir. Poucas que sejam, porém, são ainda assim o que resta de decência, de humanidade, e de esperança em Israel. 
São vozes como as do escritor Amos Oz, de Gideon Levy e outros jornalistas do diário Haaretz, do movimento Peace Now, do grupo Standing Together, aqueles de que ouço falar, outros haverá. Ouvem-se aqui e ali (mas se calhar mais aqui do que ali) escritores e intelectuais judeus a condenarem as atuações do exército de Israel. 

A continuação da guerra e dos crimes que a coberto dela se cometem começa a corroer a indiferença. 
Há pouco tempo, no dia da Memória do Holocausto (24 de Abril), três das raras sobreviventes do terror nazi postaram-se à entrada do memorial do Holocausto onde decorriam as comemorações oficiais com um cartaz e uma mensagem clara: «Se perdemos a nossa compaixão pelo outro, perdemos a nossa humanidade.» Uma delas contou ter chorado ao ler a notícia sobre uma criança de Gaza que perdeu os dois braços num bombardeamento israelita e que ao acordar a primeira coisa que fez foi virar-se para a mãe e perguntar: «Como te vou abraçar agora?»
Ao mesmo tempo em Telavive milhares de pessoas manifestavam-se contra a guerra e a limpeza étnica que prossegue em Gaza. Algumas descendentes de sobreviventes dos campos de extermínio nazis, afrontando insultos e agressões, vestidas de negro, empunhavam fotografias de crianças palestinianas mortas nos bombardeamentos, e exibiam panelas vazias a lembrar a fome a que Israel condena os sobreviventes de Gaza com o bloqueio que impõe à ajuda humanitária.

Talvez tenha chegado a hora de começar a registar os nomes destes que hão de um dia representar a consciência de Israel, os Justos que souberam levantar-se de entre a indiferença e afrontar os riscos que isso representa hoje em Israel. 
Talvez esteja a chegar a hora de começar a plantar as árvores de um novo jardim. Desta vez, dedicado aos Justos de Israel.
Haverá aí uma árvore para Yotam Vilk, o soldado de um esquadrão de blindados, que se recusa continuar a lutar depois de ver assassinar a sangue frio um adolescente palestiniano desarmado, cansado, como ele diz, por «estarem ali sem verem os palestinianos como pessoas. De ver coisas que estão para lá dos limites éticos, de ver como os palestinianos são indiscriminadamente mortos e as casas destruídas. De ver soldados (do proclamado «exército mais ético do mundo») a saquearem e a vandalizarem residências». Tudo isto acontece enquanto o Governo fala cada vez menos da libertação dos reféns e cada vez mais da expulsão dos palestinianos, ao mesmo tempo que negoceia a instalação das populações deslocadas, agora em «condições humanas e dignas» noutros países (Etiópia, por exemplo). O objetivo cada vez mais explícito é transformar Gaza num paraíso balnear onde possam viver em paz os colonos que aspiram à expansão do seu espaço vital. 
Já em tempos aqui se falou neste caso, mas os que chegaram atrasados poderão ler em: https://zelima388727646.wordpress.com/wp-admin/post.php?post=1136&action=edit

Nesse novo jardim dos Justos deverá também haver uma árvore com o nome de Yuval Green, um jovem médico de 27 anos, que abandonou o seu posto em Gaza, incapaz de viver com o que tinha visto: soldados a incendiarem casas, a participar em saques à procura de contas de oração para levarem como recordações.
Uma árvore também com o nome de Ishai Menuchim do movimento de soldados (Yesh Gvul) que recusam participar nos combates em Gaza e que são a parte visível de um movimento crescente de revolta das consciências. 
Haverá árvores com nomes como o de Veronika Cohen, hoje com 80 anos, nascida no gueto de Budapeste, que ao falar nas comemorações do Holocausto disse: «Acho que não é justo lembrar o nosso sofrimento sem reconhecer o sofrimento de Gaza»; ou o nome de Ruth Vleeschhouwer Falak, de 89 anos, que sobreviveu à ocupação nazi da Holanda, e que hoje diz: «Na década de 1930, se os alemães se tivessem levantado contra o partido nazi, talvez eles não tivessem conseguido fazer o que fizeram connosco.»

Há mais de duas mil árvores no atual Jardim dos Justos entre as Nações. 
Quantas haverá num futuro Jardim dos Justos de Israel?

Placa a assinalar o local onde se encontra a árvore do português Aristides Sousa Mendes no Jardim dos Justos, em Jerusalém

Heróis sem medalha

Que terá acontecido ao grupo de amigos holandeses que protegeram Anne Frank do terror nazi?
Todos conhecemos mais ou menos a história de Anne Frank, se calhar teremos até lido o diário que escreveu durante o tempo em que viveu escondida com a família (de julho de 42 a agosto de 44) num anexo secreto, criado com a cumplicidade dos amigos. Até que uma denúncia anónima fez com que fossem todos presos pela polícia secreta alemã (Gestapo). 
Conhecemos menos, porém, ou não conhecemos de todo, a história dos amigos que daquele modo lhes permitiu sobreviverem isolados do mundo e da curiosidade dos vizinhos e da Gestapo.

Era preciso coragem. 
Afrontar as imposições das forças ocupantes dava direito a prisão e castigo certo. Os invasores nazis condenavam quem prestasse qualquer ajuda aos judeus perseguidos, muitos deles fugidos da Alemanha, na esperança de encontrarem refúgio na vizinha Holanda, como era o caso da família Frank. Os amigos de Otto Frank, o pai de Anne, não terão sido os únicos a mostrar essa coragem. Outros houve certamente, mas talvez o caso deles se tenha tornado mais conhecido pela notoriedade que involuntariamente lhes deu uma menina judia de treze anos quando o diário dela, escondido por um dos seus salvadores, acabou por ser publicado depois da guerra acabar. 

Mas também o denunciante anónimo que levou à prisão dos refugiados do anexo secreto não foi caso único.
Em 2025, no início do ano, o Governo holandês tornou públicos os documentos secretos dos arquivos oficiais sobre as pessoas que tinham sido investigadas por colaboração com as forças nazis durante a ocupação da Holanda, de 1940 a 1945. Foram assim revelados os nomes de 425.000 pessoas. Muitas delas terão contribuído para a prisão, o internamento em campos de concentração e a morte de milhares de judeus holandeses no implacável sistema de extermínio nazi. No fim da guerra, apenas 27% da população de judeus holandeses tinha sobrevivido. 

Terão uns colaborado por medo, cedendo a pressões intoleráveis, mas também outros voluntariamente, por se identificarem com quem detém o Poder. Num livro publicado recentemente sobre os informadores da Pide, em Portugal, viu-se que muitos deles o faziam espontaneamente, em cartas que escreviam por sua mão, a denunciar pessoas (conhecidos, vizinhos, colegas) suspeitos, por não serem «afetos ao regime».  

Ninguém nasce para ser herói, dir-se-á. E dir-se-á também que mais são as circunstâncias que tudo decidem. E se as mais das vezes os heróis de que se fala quando se fala de heróis surgem-nos envoltos no calor do combate, ou recobertos das suas bandeira, das suas ideias e ideais, são menos as vezes em que falamos de outra coragem, muitas vezes desconhecida, dos poucos que simplesmente se erguem acima da sua frágil humanidade e recusam pactuar com a prepotência.
Ninguém celebrará afinal essa coragem silenciosa, perante uma nova normalidade, «quando o tiroteio emudece, / quando o inimigo se torna invisível / e a eterna sombra das armas recobre o céu.» 

Quando a desordem se torna ordem, quando o Poder que tudo invade, corrompe tudo e todos, não é fácil o afrontamento, não é fácil dizer não. Diante do Poder triunfante e dominante, sentimo-nos desarmados, isolados. As vozes que se erguem contra a opressão são isso mesmo, e muitas vezes só isso: vozes. A Resistência de que se fala e que é representada nos murais que surgem pelas cidades é feita de gestos grandiosos, de bandeiras desfraldadas, de palavras de ordem desafiadoras e gloriosas. Mas essa Resistência idealizada é quase sempre a Resistência de outros, que combatem à distância, longe do morno quotidiano, da «pequena dor tão mansa e quase vegetal que cada um de nós / traz docemente pela mão». O risco, quando há risco, nunca vai muito além de alguns problemas, de algumas contrariedades que enfrentamos com advogado ao nosso lado. E no entanto mesmo essa pequena coragem nos falta tantas vezes. Não será a vida que se arrisca, diremos, mas arrisca-se perder o emprego, a casa, a tranquilidade, a aceitação dos que nos rodeiam. Quem não se há de habituar às quase necessárias concessões, alibis aceitáveis para se poder continuar a viver,  conviver, sobreviver? Aos poucos habituamo-nos a ver as palavras perderem o sentido que antes tinham e a que agora é o Poder a assacar-lhes o sentido que devem ter. Não se diz igualdade, não de pode dizer inclusão, proibido dizer diversidade: todas elas são palavras proibidas. 
Nessa nova ordem, o que antes era recatadamente disfarçado, torna-se agora triunfante. A empatia, a compaixão, a identificação com o sofrimento dos outros terá agora que se defrontar com a hostilidade e até a punição de quem detém o Poder. Torna-se possível declarar abertamente como princípio aceite ou aceitável coisas destas: «A empatia é um vírus, um bug, no sistema moral, uma fraqueza da civilização ocidental». Isto dito pelo homem mais rico do mundo, um dos homens mais poderosos de Magalândia, por sua vez o país mais poderoso do mundo, conselheiro e cúmplice do maganão que governa Magalândia. Num momento seguinte, será dado mais um passo, também esse anunciado pelo mesmo Elon Trump: «as decisões políticas devem ser tomadas por inteligência artificial, essas sim lógicas e racionais, que não se deixam influenciar pela empatia».

A coragem para recusar essa lógica e essa desumanização passará as mais das vezes por pequenos gestos, uma recusa silenciosa, para a qual não há medalhas e que nenhum mural celebrará. Coisas de pessoas que não se vêem como heróis, simplesmente pessoas decentes. E é isso talvez o que simplesmente nos é pedido.
Antes de acabar, deixem-me citar mais uma vez o poema «Todos os dias», de Ingborg Bachman, que traduzi em tempos para a inestimável DiVersos, uma revistinha muito da minha predileção: 

«A medalha a pobre estrela / da esperança sobre o coração / (…) Conferida / por deserção da bandeira, / por coragem face ao amigo, / por denúncia dos segredos infames / e por desobediência / a todas as ordens.»

A guerra acabou!

Deve ter sido na noite passada. E cheira-me que foram os da Resiliência. O aspeto acabadinho, apurado, sem respingos; o estilo críptico, terminante como um desafio – tudo faz pensar que anda aqui mão deles.
Será possível que guerra tão longa e tão acirrada acabe assim de uma penada? (De uma pincelada, aliás!) Como quem apaga uma inconveniência ou se descarta de uma servidão.
Assim ficam para trás as batalhas travadas, rejeitadas para a memória obscura onde se travam lutas igualmente obscuras, com inimigo e alvo tão obscuro como todo o resto?
De tudo (ou de nada) apenas restarão as crónicas:
https://wordpress.com/post/zelima388727646.wordpress.com/1129  

E os da Resistência? Será que se deixam ficar? Sem darem resposta a este desafio (ou provocação, não se sabe ao certo)?
Na mesma parede de sempre, a página em branco (em preto, aliás), está mesmo a pedi-las.
A ver vamos.

O interno feminino

Ora vamos lá ouvir o que nos conta o amigo Ortigão, chegadinho de Paris carregadinho de novidades e de opiniões.
Encontrei-o na Feira da Ladra, em Lisboa, numa banca do alfarrabista onde não é raro desaguarem raridades como as suas (do Ortigão) «Notas de Viagem, Paris e a Exposição universal (1878-1879). Ouvir «Então, que tal Paris?», foi para a ramalhal figura como que a deixa para a sua caudalosa entrada em cena, para as impressões e considerações que trazia já muito à mão, prontas a desembalar e exibir diante do pasmo e deslumbramento de quem o quisesse ouvir. 
Tudo fresco, inédito, moderno, na sua fala intransigentemente vernácula, esquiva a qualquer reforma vocabular ou orthográphica: «Entre o Pariz de hoje e o Pariz de ha nove annos, a differença exterior que mais impressiona é a do aspecto das mulheres”, prologou ele.
A coisa prometia, pelo que deixava adivinhar.

É que Ramalho Ortigão não é um qualquer portuguesinho perdido entre as 13 milhões de pessoas de todos os cantos do mundo que na altura visitavam Paris e a sua pujante Exposição Universal. A Exposição e não só. Ao nosso Ramalho, sobrou-lhe ainda tempo para visitar a Sorbonne, o collegio de França e a escola de medicina e para disso tudo nos dar notícia. Mas tempo também, como seria de esperar, para admirar as muitas exibições que em Pariz davam conta dos avanços da Agricultura, das Artes e da Indústria. E em tudo isso se alarga o ramalhal assombro: o telefone de Bell, o phonographo de Edison, e até a cabeça da colossal estátua da Liberdade destinada ao porto de Nova York onde «no logar do cerebello, podem jantar duas ou tres familias.» E pergunto-me ainda se não terá  ele também visitado a «village nègre», considerada uma uma das atrações «científicas!!» mais populares da Exposição, um dito «Zoo humano» onde eram exibidos 400 indígenas trazidos das colónias francesas. 
Que mais interessou Ramalho na Exposição?
Os congressos!
Vários. Todos eles dando a conhecer e discutindo o que de mais notável se fazia no mundo nos mais variados domínios: meteorologia, matemática, indústria, engenharia, hygiene, medicina, sciencias e etc etc. O pormenor do relato faz crer que Ramalho Ortigão não perdeu pitada. Culto, inteligente, curioso, toca em todos esses domínios, sempre com o mesmo interesse e rigor. De tantos congressos, porém, «nenhum parecia destinado a attrahir tão especialmente a attenção do publico como o congresso das mulheres.». Isto diz Ramalho e, não sei porquê, tenho para mim que talvez também a ele lhe tenha merecido um interesse particular, ao ponto de lhe reservar um capítulo especial nas suas «Notas de Viagem».
Mas não gostou. 
As mulheres reunidas nesse congresso, afinal dedicavam-se a discutir as discriminações com que a lei tratava as mulheres, exigindo que «as medidas policiaes com relação á mulher se limitem a fazer respeitar a ordem publica sem distincção de sexos» e coisas deste teor. E Ramalho não gostou. Não gostou porque «querer fazer da mulher o ente mais igual ao homem, como estas senhoras declamaram em todas as suas reuniões, é cahir no maior dos erros emquanto á comprehensão do destino feminino. A alliança conjugal baseia-se precisamente no principio das dissimilhanças. A mulher é precisa, é indispensavel, é essencial ao homem exactamente pela razão de que é mais fraca do que elle. É da sua fraqueza que a mulher tira o immenso poder que contrabalança toda a nossa força e que torna a esposa o complemento de nós mesmos, a nossa companheira, a nossa igual.»
«Dêm-lhe ao mesmo tempo a abolição de todas as penas que nos nossos codigos ferem a violação dos deveres da filha, da esposa e da mãi, e todas as grandes qualidades que distinguem a mulher e fazem d’ella a metade integrante da humanidade se atrophiarão successivamente até cessarem para sempre de funccionar. A mulher então será livre – livre para não prestar para nada.»

Ramalho Ortigão, zangado com as senhoras do Congresso das Mulheres, é peremptório: «A grande, a elevada, a importante funcção da mulher na sociedade humana não é ser telegraphista, ser boticaria, ser jornalista ou ser doutora; é ser mãe e é ser esposa.»

Estou convencídissimo de que não há de faltar por aí gente em barda a concordar com a ramalhal invectiva. «A mulher é em casa que se quer», abona o país onde até a violência, quando doméstica, goza de uma esfera de impunidade onde não é bem aceite que a Justiça meta a colher. O que a Justiça, aliás, de bom grado repete nos seus acórdãos, sempre que lhe dão azo para tal. 

O chiste, a verve, o fino recorte literário da ramalhal prosa valem um seguro aval a esta sua declaração da quintessência do feminino. 
Mas… (lá tinha de vir o mas) isso só para uso interno, claro, um interno feminino, digamos assim. Porque para uso externo já a conversa é outra, e é outro o externo feminino. É que sempre há de vir de lá algum que logo retruca-truca: mas, vamos lá a ver, se todas elas são mães e esposas como é que…?
E também para isso nos chega a pronta resposta de Pariz e do muito nosso Ortigão: «Pariz produz igualmente a cocotte. A cocotte é uma das molas mais poderosas da civilisação e do progresso. (…)  A immensa multidão das pequenas cousas inventadas para tornarem a vida mais doce, mais facil, mais espirituosa, mais subtil, mais delicada, mais digna, não existiria no mundo se desde a antiga Grecia, a mãe das artes, até o moderno boulevard de Pariz, não tivesse existido a cocotte..»

E é assim que a cocotte (e acho que não é preciso traduzir) salva a família, o casamento, a tranquilidade e «o amor sublime d’esses entes sobrehumanos que fazem consistir toda a sua aspiração, toda a sua honra, toda a sua gloria, em serem unica e exclusivamente na terra as mães de bons filhos.»

Pode ser que já não exista o Pariz de que nos falam as “Notas de Viagem” do bom do Ramalho Ortigão, ele próprio já só lembrado em vagas referências nas sacristias e nos acórdãos judiciais. Mas se isso se foi, ficou o relento bafiento da surda violência dessas máximas disfarçadas de bom senso. Bom senso esse de que já Ortigão nos dava a sua ramalhal definição: «o pariziense, que é o bom senso encarnado, não admitte em geral senão duas especies de amor: o amor honesto, legalisado na dignidade tranquilla e fecunda da familia, ou o amor absolutamente livre, de caracter arbitrario, temperado com a porção de desdem indispensavel ás garantias da liberdade, na tolerancia anarchica da cocotte.»

Ai de mim, que começo pelos temas sérios e conceituados da Exposição Universal de Paris de 1878, que nos trouxe os primeiros passos da proteção das propriedade literária, da adoção generalizada do alfabeto Braille e numerosas invenções úteis de que ainda hoje nos servimos, para descambar depois por esses boulevards abaixo e acabar a falar das cocottes que tanto entusiasmaram o Ramalho… Para não ficar com a vergonha toda, deixo aqui a fechar a página a photo do Pavilhão Português na Exposição. A ver se com isso me redimo.

 

não há palavras

Na infância da humanidade, muito antes de se falar em influencers, quando não havia universidades, nem internet, nem Wikipédia, não havia também mais nada que pudesse servir de candeia no mundo de trevas e de mistério em que tudo parecia estar mergulhado. A explicação para as coisas e para os acontecimentos, assentava antes naquilo a que hoje chamamos o pensamento mágico: a crença no poder do pensamento para agir sobre a realidade, na capacidade de dominar o mundo exterior através de rituais ou de palavras mágicas. No fundo, uma forma de racionalizar o desconhecido e os medos que ele desperta. Em muitas tradições místicas e esotéricas crê-se que as palavras possuem esse poder e que são (podem ser) agentes de criação de uma realidade até aí inexistente. 

Quando nada mais havia, havia já a palavra («No princípio era o Verbo», diz um dos livros sagrados do cristianismo) e é tal o poder da palavra que pode criar a realidade que nomeia. Diz-se : «Faça-se luz! E a luz faz-se». Diz-se «Abracadabra» e logo aparecerá o que desejamos (ou desaparecerá o que tememos). Quantos e quantos pastorinhos não andarão por esses montes e fragas a gritar-lhes o «abre-te sésamo» que fará surgir a gruta de tesouros sem fim que sabem estar aí escondidos à guarda de alguma moura encantada, só à espera de ser desencantada.
De certo modo, podemos dizer que em toda a nossa cultura por todo o lado e a todo propósito e despropósito está latente a ideia de que sem uma palavra que a nomeie nenhuma realidade existe.


Num livro que se tornou famoso pelo que tem de visionário e premonitório, George Orwell imaginou um universo totalitário em que o Poder não só domina a sociedade como a pretende transformar tão radicalmente que nenhuma alternativa possa jamais existir. O instrumento mais poderoso de que dispõe é precisamente a língua, as palavras. Em particular a «novafala», a língua oficial, que se vai sobrepondo de forma radical (e, supostamente, irreversível) à língua até então falada. Partindo do princípio de que só existe e só pode ser pensado, o que pode ser nomeado, o objetivo da novafala era tornar impossível qualquer outro modo de pensar, para além do pensamento oficial, de modo que «qualquer pensamento herege — isto é, qualquer pensamento que divergisse dos princípios [oficiais] — se tornasse literalmente impensável. Era algo que se fazia em parte inventando novas palavras, mas sobretudo eliminando palavras indesejáveis e excluindo das palavras que restassem todos os sentidos heterodoxos e, tanto quanto possível, todos os sentidos secundários».

De um modo ou outro, não há ditadura nenhuma capaz de resistir à mesma tentação de eliminar uma realidade incómoda, proibindo tudo o que a possa referir. Proíbem-se livros, filmes, canções e proibem-se também as palavras. A Censura salazarista enviava às redações e às rádios listas de palavras que não poderiam ser usadas nos noticiários ou nos textos publicados. Palavras como sindicato, greve, manifestação, liberdade de imprensa, e todas as que pudessem despertar a curiosidade sobre o mundo onde elas podiam existir, eram suprimidas do vocabulário, na ideia de que não havendo palavras não haveria a realidade que elas traduziam.

O livro de Orwell foi publicado em 1949 e intitula-se «1984» (tradução para português de Vasco Rato, ed. Dom Quixote.) 
Bem poderia ser «2025».
O que ele descreveu como uma ficção é cada vez mais uma realidade em várias pontos do mundo. Sempre ditaduras. Um caso surpreendente porém poderia ser o de Magaland, talvez o país mais rico e mais poderoso do mundo, onde hoje em dia assistimos a uma série de transformações que em tudo fazem lembrar as operações linguísticas (e outras) do mundo sinistro retratado por Orwell.

Além de revogar todas as medidas até aí existentes que pudessem contender com a nova visão do novo Presidente, é adotada uma política deliberada de apagar da memória (por enquanto só da memória oficial, dos organismos do Governo) tudo o que pudesse evocar uma realidade diferente. Ultimamente chegou-se ao ponto de eliminar todos os documentos oficiais ou partes dele que fizessem referência a políticas ou realidades condenadas pela nova Administração. As palavras usadas na busca de tais documentos são tão precisas e direcionadas como: anti-racismo, diversidade, igualdade, preconceito, crise climática, feminismo, nativos americanos, emigrantes, poluição, diferenças culturais, preferências sexuais… E mais um ror de palavras deste teor. Um dos principais jornais do país publicou nessa altura uma amostragem das palavras que deveriam ser riscadas dos documentos oficiais existentes e evitadas daí para a frente. São centenas. Com resultados por vezes inesperados: uma investigadora de uma das mais prestigiadas universidades do mundo (mas… lá está, professora de ginecologia e obstetrícia, uma área que abunda em palavras proibidas) viu desaparecer do pé para a mão um artigo que tinha escrito e publicado há cinco anos numa revista da especialidade. Deixou de existir, pura e simplesmente.

Leio isto e penso que há aqui qualquer coisa que não deixa de nos fazer lembrar o «pensamento mágico» primitivo, a ideia de que apagar (por decreto) a palavra equivale a apagar a realidade que ela designa (ou designava).

A conversa já vai longa e não sei sequer se o merece, pelo que já me calo antes que se torne indigesta. Hoje deu-me para aqui. E se o que me puxou foi aquela lista de palavras proibidas decretada em Magalândia, o que me pôs a pensar nestas coisas das palavras e dos seus ignorados poderes foi uma cena a que assisti quando andava a passear o cão. Não tem nada a ver, claro, mas meio a rir meio a sério achei que poderia ser uma boa metáfora da destruição da palavra (e do direito à palavra) a que todos os déspotas se propõem com tantas ganas que nem que seja à marretada. Tirei uma fotografia e aqui a deixo, para ver se também acharão que é assim.

infidelidade sem culpa

Tradutor de ofício, dou por mim agora a traduzir… uma tradução. Não é coisa que, à partida, me agrade por aí além, desde já o digo. Mas não havia muito por onde escolher: o livro foi escrito em árabe, a editora não encontrou quem pudesse traduzir o livro a partir do original, e não viu outro recurso que não fosse pegar na versão inglesa. E aqui me têm enfiado neste singular arranjo de dois tradutores com um livro pelo meio, uma espécie de capicua de oficiais do mesmo ofício.
Mas dizia eu que não é coisa muito do meu agrado e explico porquê. 
Ao traduzir um livro, estou de certo modo a propor ao leitor português a leitura que eu faço desse livro. Como se o lesse em voz alta. Procurando repetir as inflexões, o tom, a articulação particular do autor. Como quem, para reproduzir uma qualquer obra, procura recorrer aos mesmos materiais e às mesmas ferramentas que foram usadas no original. Essa fidelidade ao original traduz-se, no caso da tradução, em seguir o mais possível de perto as pegadas deixadas pelo autor, pelo menos aquelas que são transponíveis para a nossa língua – desde o estilo e a linguagem, mais ou menos popular ou mais ou menos erudito, até às inflexões que lhe dá a época ou o lugar, passando por edecetras tão variados como a pontuação ou as particularidades ou tiques de linguagem ou de estilo e outras miudezas do género. 
Mas… e no caso de se tratar da tradução de uma tradução?

Faz-me pensar naquele jogo de crianças em que se diz uma frase ao ouvido de um outro, que ele deve repetir ao ouvido mais próximo, e assim por diante até voltar ao autor da versão original – percebe-se então que muito mudou pelo caminho, alguém tirou ou juntou um ponto ao conto. No caso de uma tradução que não podemos confrontar com o original, como avaliar o que se perdeu pelo caminho? Se é que se perdeu, mas também isso não teremos maneira de o saber.

Enfim, quero eu dizer na minha que no caso da tradução de uma tradução há qualquer coisa que faz com que não me sinta vinculado, ou limitado, pelo mesmo pacto de fidelidade que me ligaria ao autor original.

Mas com a tradução que agora tenho em mãos, deu-se uma coisa curiosa: liberto das peias da fidelidade literal, tudo fluía mais livremente, mais ao jeito da nossa língua, sem quaisquer contorsões ou embaraços. Não é que deixasse de ser a tradução de uma tradução, pois que me sentia apesar de tudo ligado por um laço de lealdade à tradutora que me servia de mediação. Uma confiança igual à do corredor que confia no companheiro de equipa que lhe passa o testemunho. Mas – e é isto talvez mais importante ainda – havia aqui qualquer coisa de inesperadamente diferente: era como se entre a voz da versão inglesa e a voz do original árabe me chegasse ainda uma terceira voz, de uma língua vinda de tempos imemoriais, quando em toda a Terra havia somente uma língua, e era como se sentisse latente essa voz comum a toda a humanidade, uma voz que continuasse a vibrar em todas as línguas faladas, herdeiras dessa comum ancestral, anterior a Babel, anterior à confusão das línguas e à dispersão de todos os habitantes da Terra a que os condenou a fúria do iracundo Iavé da Bíblia. 

Compreendi melhor então o que queria dizer o poeta Herberto Helder ao apresentar o livro O Bebedor Nocturno, onde reuniu alguns poemas de outras culturas e civilizações «mudados» para português: poemas do Antigo Egipto, de poemas aztecas, malgaxes, e de outras civilizações: «Pego no Livro dos Mortos, em inglês ou francês, como se fosse um poema inglês ou francês, e, ousando, ouso não só um poema português como também, e sobretudo, um poema meu. Uma pessoa pergunta: e a fidelidade? Não me sinto infiel. É que procuro construir o poema português pelo sentido emocional, mental, linguístico que eu tinha, sub-repticiamente, ao lê-lo em inglês, francês, italiano ou espanhol.» Mais do que uma «tradução» ou uma «versão», palavras que aliás evita usar, mais do que a procura de equivalências vocabulares ou de sentidos entre uma língua e outra, HH fala de «significações suspensas, da fascinação dos sons que convergem e divergem» e do «desespero surdo» que domina, não o tradutor, mas o «poliglota», que na desunião dos idiomas busca a unidade improvável. Multiplicando as operações de propiciação da unidade, ele caminha irradiantemente para a dispersão. Descentraliza-se. Existe em estado de Babel.»

E para que se veja no que deu a ousadia herbertiana, deixo-lhes aqui uma bela poesia mexicana de língua nauatle ou azteca, incluída na referida recolha.

Nascemos para o sono,

nascemos para o sonho. 

Não foi para viver que viemos sobre a terra.

Breve apenas seremos erva que reverdece: 

verdes os corações e as pétalas estendidas.

Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal.

Voltar a casa

Como quem volta a casa, esteve aqui hoje de visita o Manuel Resende, o poeta, amigo também. Faria hoje 77 anos. E como era meu costume haveria de mandar-lhe algum poema de que eu gostasse, a servir de prenda de aniversário. 
Seria desta vez um poema de Primo Levi, de «A Uma Hora Incerta» (tradução de Rui Miguel Ribeiro, que acaba de sair nas Edições do Saguão) e que a Chiara me ofereceu há dias: «Este é o tempo dos relâmpagos sem trovões, / Este é o tempo das vozes não ouvidas / Dos sonos inquietos e das vãs vigílias (…)» 
a condizer com o que eu ia para dizer, do ar de desencanto que por aí corre. Que parece que, desavindos com a esperança que em tempos nos animou (porque, sim, também isso é verdade), corremos agora a esconder-nos das notícias que nos chegam, de tanta ignomínia sem freio, e tantas vezes cometida em nosso nome. Ia para falar disso, pronto, mas lembrei-me a tempo que atrás de tempos, tempos vêm e que nada acabou ainda. É só um pouco tarde, talvez.
E também disso fala o Primo Levi:

«… não esqueças os dias

Dos silêncios longos e fáceis,

Das estradas nocturnas e amigáveis,

Das meditações serenas,

Antes que as folhas caiam,

Antes que o céu se volte a fechar,

Antes que novamente despertemos,

Reconhecendo, diante das nossas portas,

O percutir dos passos de ferro.»

São coisas que o Manel entendia, de que falou também ele. 
Desta vez, então, será ele a trazer um poema para partilhar com os que por aqui passam e que poderão não o conhecer ainda. Aqui está:

Estava nas cartas…

Será que alguém de entre os que por aqui passam terá lido um livrinho intitulado «Desconhecido nesta morada»? Traduzi-o há mais de vinte anos, ando agora a revê-lo para outra editora e, ao fazê-lo, fui levado de volta a uma série de perguntas, de dúvidas e dessas coisas que nos perturbam o sono, que já nessa altura me atanazavam. Quando digo livrinho não é só um modo de falar. Trata-se realmente de um pequeno conto, que se leria numa viagem de autocarro se por acaso se lesse nos autocarros. Em texto corrido, provavelmente não iria além das trinta ou quarenta páginas. E só a inventiva dos paginadores, mais um prefácio, um posfácio ou outras notas do género para ajudar à missa, conseguem esticar a coisa até àquele mínimo capaz de lhe dar direito a lombada.

O conto é a história de dois amigos alemães, Max e Martin, que vivem na América, em São Francisco, onde são sócios de uma galeria de arte. Liga-os uma forte amizade que, mesmo depois da partida de um deles, se prolonga através das cartas que vão trocando. São essas cartas que alimentam o fio narrativo do livro: de volta à pátria, Martin, vai contando a Max, em sucessivos episódios, o ambiente que se vive na Alemanha durante o período conturbado da ascensão de Hitler ao poder.
Publicada em 1938, há nesta história qualquer coisa de premonitório sobre os horrores nazis que estavam para vir. Ninguém, nessa altura, poderia antever os crimes sem nome dos campos de extermínio, dos fornos crematórios, do genocídio dos judeus alemães e do resto da Europa. Muito embora houvesse já sinais inequívocos do caminho que se traçava nessa direção e houve pessoas mais atentas que os souberam ler. Kathrine Kressman Taylor, a autora deste conto, foi uma delas. 

A ação cobre um período de 18 meses, entre 1932 e 1934 – o período de «gestação do ovo da serpente”: em Janeiro de 1933 Hitler passa a ser o Chanceler da Alemanha; em Março, é construído o campo de concentração de Dachau, onde começam por ser internados comunistas, sociais-democratas, sindicalistas e outros «inimigos do povo»; em Abril, os judeus são banidos da função pública; em Julho, é autorizada a esterilização forçadas dos ciganos, dos deficientes e dos alemães de cor; em 1934, depois da morte do Presidente Hindenburg, Hitler proclama-se «Führer do Terceiro Reich» e são decretadas as leis raciais antissemitas que prenunciam as Leis de Nuremberga para a Protecção do Sangue Alemão e da Honra Alemã (1935),  e a chamada «solução final para o problema judaico». É este o ar que se respira na Alemanha, que respira Martin, e que transpira na correspondência que trava com Max, o seu sócio e amigo judeu que ficou na América.
E é tóxico, esse ar, e aos poucos vai contaminando o próprio Martin. A princípio, é ainda com alguma reserva que ele observa a caminhada de Hitler para o poder total («pergunto a mim próprio: será que ele não é louco?»), reserva essa que o medo ou a prudência o obriga a mascarar («Todos nós, e quem tem amor à pele, apressámo-nos a aderir ao Nacional-Socialismo»), mas não tarda a evoluir para uma aceitação passiva que rapidamente se trasmuda em entusiasmo com esta «nova Alemanha guiada pelo nosso Amado Chefe!» 

Caso para dizer: estava nas cartas! Como fotogramas de um filme que só no final poderemos ver na totalidade, ganhando então o seu pleno sentido, carta a carta, a autora vai mostrando os passos que conduzem inelutavelmente ao desfecho fatídico, como um castelo de cartas que se foi erguendo até desabar de um só golpe.

Foi justamente ao ver os efeitos do «veneno nazi» sobre pessoas que ela considerava aparentemente imunes  («amigos meus alemães, cultos, intelectuais, generosos» que «em muitíssimo pouco tempo se tornaram nazis convictos»), que Katherine Kressman Taylor decidiu escrever Desconhecido nesta morada: «Queria escrever sobre aquilo que os nazis faziam e mostrar ao público americano o que estava a acontecer a pessoas reais, vivas, apanhadas pela vaga de uma ideologia perversa».

E pelos vistos o objetivo da autora tem vindo a fazer o seu caminho. Esgotado em poucos dias depois da primeira publicação, Desconhecido nesta morada nunca parou de ser reeditado, traduzido, adaptado ao teatro e ao cinema. Esta popularidade de um texto que, de outro modo, nem pela escrita nem pelo tema, se destacaria particularmente de outras obras de ficção com o mesmo fundo histórico, deve-se, quanto a mim, em grande parte a dois fatores fundamentais. Um deles tem a ver com a escolha da «troca de cartas» como forma de «contar» a história. A linguagem é, assim, simples, despida de figuras de estilo ou de artifícios literários, próprio de uma correspondência entre amigos. A escrita, liberta das usuais convenções da novela assenta apenas nos factos capazes de fazer progredir a ação, sem mais derivas,  sem a mediação de um narrador omnisciente, ou seja sem uma postura moral ou uma elaboração de motivações e justificações, como seria próprio de uma narrativa tradicional. De certo modo é o próprio leitor que vai construindo a história, julgando os motivos e os factos que lhe vão chegando. 
O segundo fator de que falei, aliás decisivo, é o modo como a autora conclui o conto. Um verdadeiro achado! Estou convencido de que é esse final, precisamente, o que de modo mais vívido persiste na memória dos leitores ao fim de muito tempo.

Como todas as histórias exemplares – e a autora não esconde os propósitos edificantes do seu conto numa «América isolacionista (…) onde os políticos declaravam que as histórias da Europa não nos diziam respeito e que a Alemanha não era um problema» – também esta pretende servir de aviso para o futuro. Futuro que é já hoje, aliás. Os sinais premonitórios estão aí, assim os saibamos ler. Ou não estaremos hoje a assistir em muitos lados aos ensaios que preparam o terreno para qualquer coisa  que, tal como então se pensava, também nós achamos ainda que não é possível acontecer nos nossos dias? A eliminação sistemática e impiedosa dos objetores por quem detém o Poder; a instituição do culto do chefe acima de qualquer hesitação; o cinismo com que todo o género de acólitos e apparatchiks desvalorizam ou justificam o injustificável; a oportuna incriminação de  bodes expiatórios, sejam eles as minorias étnicas ou sociais, os emigrantes, os dissidentes…  tudo isto soa a uma nova versão de uma tragédia que quereríamos esquecer.

Ia ainda falar de outra coisa relacionada com isto (as tais perguntas e questões que o livro me trouxe de volta), mas a conversa já vai longa e fica para outra vez. O que aqui está já dá para tirar o sono a muita gente.

Rosas e Dinamite

Costuma dizer-se que o acaso faz bem as coisas. Nem sempre assim será, mas desta vez, por acaso é verdade. Foi por acaso que conheci a poesia de Manuela Nogueira, que daqui a pouco lhes irei apresentar. Mas primeiro vamos ao tal acaso, que se deu quando encontrei um amigo meu muito chateado porque tinha de ir fazer uma entrevista para uma revista e à última hora tinham-lhe sonegado o fotógrafo. E foi então que eu, arrastado pelo empurrão do acaso (lá está!) me ofereci para o acompanhar e fazer as vezes do gazeteiro. Sobra-me em atrevimento o que me falta em juízo, como não deixaria de dizer, se ali estivesse, o Jean Némar, meu amigo e confessor, que é o estribilho usual dele quando me vê atirar-me da prancha de cabeça sem saber nadar. É capaz de ter razão, mas a verdade é que daí a pouco lá ia eu com esse meu amigo a caminho do Estoril e da tal entrevista.

E a entrevistada era precisamente a já nomeada Manuela Nogueira, que eu não conhecia e de quem até então nunca ouvira falar. Conversa daqui, conversa dali, fui tirando umas fotografias ora daqui ora dali e eles lá entraram na matéria da entrevista.
A despropósito, mas para que se veja a caloirice do fotógrafo improvisado, explicaram-me depois que é de regra nos jornais nunca incluir o entrevistador nas fotografias, o que  eu não respeitei na maior parte das que tirei. E que agora servem só para arquivo do meu atrevimento.
Enquanto falavam, cumprida a minha parte da missão, pus-me a deambular pela casa e a admirar as muitas coisas que por lá havia para admirar. De vez em quando chegavam-me em fundo as palavras deles e ainda mais de vez em quando umas risadinhas breves, frescas, de menina. Menina essa, diga-se já, que andaria pelos seus noventa e muitos anos. Irresistíveis, também, aquelas risadas. E contagiantes. Estou convencido de que era para poder ouvir esse riso tão límpido e alegre que o tio dela, o poeta Fernando Pessoa, se punha a fazer palhaçadas, enquanto ela o observava da janela, fingindo-se de distraído e indo de encontro aos candeeiros da rua. Aliás, é essa memória enternecida que ela guarda desse tio brincalhão e bem disposto. E que ela perpetua nessa casa onde agora mora.
Em tudo quanto é parede, mesa, móvel, repete-se quase em exclusivo a presença de Fernando Pessoa, declinado em fotografias, desenhos, pinturas, bonecos, caricaturas, e até estampados de tecidos. O que é mais engraçado é que, ao vaguear por este emaranhado de recordações e testemunhos, nada me cheirava a museu ou fixação maníaca de colecionador. Porque de algum modo tudo parece emanar qualquer coisa de pessoal, de enternecido, de familiar. E é o que é, ao fim e ao cabo.

Neste divagar, deu-me para pegar num livro que, esse, era da autoria dela, da entrevistada. E pus-me a lê-lo. E gostei. Tanto que lhe pedi autorização para mandar alguns desses poemas para a DiVersos, uma revistinha de poesia onde às vezes colaboro com traduções de poetas do meu gosto. (Ainda aqui há de ser chamada a revista e o trabalho de paciência e dedicação do seu editor, José Carlos Marques. Fica aqui a promessa.)
Não só me autorizou como me ofereceu um exemplar do livro, Rosas e Dinamite. Por meu lado, mandei então alguns poemas do livro, depois publicados na revista. Foram acompanhados por uma breve apresentação que então escrevi naquele estilo supostamente neutro e com o seu quê de presumido próprio de quem fala sobre o que não sabe. Mas que aqui segue, apesar de tudo:

«Em Rosas e Dinamite somos surpreendidos por uma poesia onde as palavras se depuram de emoções e sentimentos, se decantam até ao mais essencial, aos “cacos da vida” – as palavras como coisas, mudas, que valem apenas pelo seu uso ou a sua beleza, como se diz num destes poemas. É um livro que pode ser lido como uma viagem, a busca de uma verdade irredutível. Que é também uma viagem de regresso, que refaz os passos de uma memória, agora despojada do que nela havia de “grinaldas de papel colorido, de efabulação”, e que mais valia fossem “um saco de feijão que se pudesse demolhar e guisar”, como se diz na sugestiva imagem do poema “Na arca da memória”. É uma poesia para nómadas, esses que antes de partirem para a longa viagem se desfazem de tudo o que possam ter de dispensável ou inútil.»
E, já agora, como prometido, aqui vão três dessas poesias, a aguçar o apetite ou a curiosidade.

Paciência eterna

Não me convidem para conversar.

Só ouço os sons e não o sentido.

Porque o destino das palavras é trocarem 

sempre o verdadeiro Destino.

Desde séculos mudam-se como cartas

numa paciência monótona e eterna.

Por mais que mudem, nunca dizem

o que apenas desejam esconder.

E assim as coisas são mais verdade. 

Por serem só úteis, inúteis ou belas.

Na arca da memória

Na arca da memória tanta efabulação,

tantas grinaldas de papel colorido, 

sonhos sem pés prontos a caminhar,

flores secas em livros sempre por abrir.

Na arca da memória tanta efabulação, 

como mentiras em caixas de vidro:

rostos, gestos vagos, imprecisos, 

cenas de angústia ou crises de riso.

Na arca da memória tanta efabulação, 

guardada num tesouro de frágil cristal, 

dele me alimento, por ele bate o coração; 

e nela, na arca, nada se guarda de real.

Se ao menos tivesse guardado um saco de feijão… 

e demolhado crescesse e guisado merecesse

o esforço de quem displicentemente o semeou…

Mas não. Na cerebral, insólita circunvalação, 

um comboio caminha por trilhos a desvendar 

nenhuma estação é para esquecer ou parar.

Só talvez na morte o terminus da razão.

Peregrinamos o mundo em caravanas

Numa húmida e fria madrugada 

que cortou o decorrer do Verão 

tive a profunda e verdadeira noção 

da diminuta exiguidade da vida.

“O tempo antecedera-se ao calendário”

– Os sonhos bem os via ruir –

mas peguei nos cacos da vida 

e tudo o mais necessário 

preparando-me para fugir.

Reparei então que havia outros parceiros 

nómadas, como eu, das leis humanas;

com eles, os desiludidos meus companheiros, 

peregrinamos o mundo em caravanas.

Raposa em chamas

Há uma imagem que me ficou de 2024, sobrepondo-se a tantas outras que me perseguem. De tão persistente, tornou-se de certo modo um símbolo capaz de condensar muitas coisas mais. Havia os carros empilhados à toa que as chuvadas súbitas tinham arrastado consigo pelas ruas de uma cidade valenciana, havia as inundações e os deslizamentos de terras e a ladainha de nomes e lugares que ficaram a assinalar o rosário de desgraças que acompanham tudo isso: Ellie o ciclone na Malásia; as searas secas e o gado morto na África do Sul, e na Etiópia e no Quénia; e as ondas de calor que paralisaram a Índia, o Bangladesh, o Paquistão; o furacão Beryl que varreu as Caraíbas; o ciclone Chido a correr desenfreado por Mayotte, Nampula, Cabo Delgado; o degelo dos glaciares europeus que levaram a Itália e a Suíça a terem de redesenhar as suas fronteiras…Então, tanta coisa e o que me fica é a imagem desta raposa que foge apavorada por entre as chamas dos incêndios californianos?

Não é que me importe mais o destino dos bichos do que o dos homens. Não é o caso, de modo nenhum. Mas há naquela imagem qualquer coisa que nos apela para além da razão. Vulneráveis, inocentes, incapazes de exprimir o seu sofrimento ou de fazer escolhas, os animais podem facilmente remeter-nos para o que há em nós de mais profundo e remoto, transcendendo culturas, línguas, sociedades. Como se essa imagem nos devolvesse a um mundo latente dentro de nós, em que todas as formas de vida estão indissoluvelmente ligadas umas às outras por uma comum ancestralidade.

Dizer que foi o ano mais quente desde que há registos, que muitas espécies se perderam para sempre, que a humanidade práqui, que a humanidade práli, etc etc. tudo isso que lemos e ouvimos nos fala à razão. Mas a raposinha em chamas, mais do que à razão, talvez nos fale antes a essa parte de nós muito mais recôndita e que ao vir ao de cima nos deixa transidos por emoções sem nome.

Indefesos e vulneráveis – ao contrário dos homens, que sabem prever os desastres, construir diques, escoadouros, dotar-se de armas de combate ao fogo, à água, à peste e a todos os apocalipses – os animais levam-nos por isso muitas vezes a ver neles de certo modo como que a imagem da nossa culpa perante a devastação. 

É que para os bichos não há sequer a vaga consolação que a invocação dos deuses, das proteções sobrenaturais, da intercessão da Virgem, com que desde o princípio dos tempos os homens procuram apaziguar a angústia que sentem diante da natureza em revolta. 
Lembremo-nos, por exemplo (mas quem hoje se lembrará?) do desastre do petroleiro Prestige, nas costas galegas em 2002. Mais de sessenta mil toneladas de petróleo que rapidamente se espalharam causando a morte de toda a vida marinha ao longo de cerca de três mil quilómetros de costa. Da Galiza ao Minho é um saltinho, não podemos deixar de pensar. E então como foi Portugal poupado? Haverá quem pense em marés, em correntes marinhas, em ventos, até no puro acaso… Mas não, como bem explicou Paulo Portas, não foi nada disso. Era ele na altura ministro de uma coisa qualquer, não sei já qual fosse (e se bem se lembram ele próprio também não sabia ao certo) e logo esclareceu que «Portugal na crise do Prestige foi muito ajudado por aquilo que – eu sou crente – acho que foi uma intervenção de Nossa Senhora». Aqui está uma coisa de que não podiam valer-se as aves e os peixes e toda a vida marinha que ali ficou condenada sem remissão. Já para não falar dos pobres do galegos, que nem direito a compensação tiveram. Ao fim de 89 sessões e 400 horas a ouvir testemunhas e peritos, o tribunal que decidiu o caso absolveu todos os implicados, sentenciando: «ninguém sabe exatamente a causa do acidente» e como tal «não há responsabilidade penal» que se possa imputar a empresas como a armadora ou as responsáveis pela inspeção.
E, já agora, se formos a fiar-nos na Virgem, porque não havemos de ver a Sua mão noutras ocasiões também? Como quando há tempos os autarcas algarvios, assustados com a seca continuada e os perigos que levantava para o turismo, logo determinaram reduções nos caudais, limitações horárias nos consumos de água, vetos às piscinas e campos de golfe e alguns outros edecetras de que agora não me lembro. Não teria havido também ali uma mãozinha amiga, ou a Sua divina intercessão a trazer de volta (como trouxe) a chuva ao Algarve e salvar a temporada turística? E logo a seguir, ainda mais rapidamente, a imediata cessação de tantos constrangimentos, sem que se pensasse em prever, em armazenar agora para futuras necessidades, essas coisas de que os autarcas estão dispensados por não sei que sagrada bula. Basta que se fiem na Virgem…

Mas agora perdi-me. Onde é que eu ia? Pois, a raposinha californiana: aí vai ela a fugir, espavorida, focinho pontiagudo, cauda flamejante, pelo meio das labaredas dos incêndios da Califórnia. É a ela que eu vejo, ainda assim, como a imagem mais pungente para ilustrar a nossa busca de um sentido para o sofrimento tantas vezes inútil a que todos os dias nos é dado assistir. E oiço-me a dizer baixinho: corre, raposinha, corre, para longe da nossa cegueira.