Fosse ele o diabo!

Foram já muitas as vezes em que a questão de Israel e da Palestina veio dar aqui a estes meus desabafos. Nestes últimos dias sobretudo tenho-me lembrado muitas vezes de um amigo israelita (a viver em Israel) e no que ele me disse uma vez que esteve em minha casa: que «tudo isto é uma perda de tempo e de vidas» [https://ze-lima.blog/2024/01/25/com-os-olhos-em-gaza/ ] Dei por mim agora a perguntar-me se por acaso tudo o que tem sucedido ultimamente em Israel e em Gaza lhe terá trazido algum consolo e alguma esperança. Tudo tem por trás a mão de Trump e o seu mais que suspeito pacifismo de última hora e são poucos os que acreditam que ele se mantenha em campo depois de ter marcado o penálti. E por isso alguém que costuma ler estas linhas também a mim me pôs a mesma pergunta, a querer saber se fiquei satisfeito com as notícias, se confio no que ele armou (ou desarmou…).

Nem que fosse o diabo!, foi o que eu respondi. Se com isso se põe termo ao sofrimento dos reféns sujeitos ao ódio fanático do Hamas, se com isso diminui o sofrimento de milhares e milhares de palestinianos vítimas de uma retaliação implacável por crimes que em nome deles foram cometidos e de que estão inocentes, que me importa a mim que se fique a dever aos cálculos, às maquinações ou às chantagens de que se serve Trump e o império americano? Fosse ele o diabo!

Mesmo se Israel continua a poder prolongar a ocupação de Gaza, a poder impor a fome como arma de controlo das populações, a poder decidir os movimentos e o futuro dos palestinianos em Gaza e no resto dos territórios ocupados, mesmo assim, todos respiraram aliviados. Muitos de nós, longe da vista, darão o caso por encerrado (eles agora que se amanhem) e talvez outros tantos se preparem para não pensar mais no assunto. Por mais que se saiba que nem Trump nem, muito menos, Netanyahu aceitam sequer a ideia do direito à autodeterminação dos palestinianos. E que do muito que se disse ficou muito mais por dizer. E por saber.
E são muitas as perguntas.
O Hamas libertou os reféns iaraelitas ainda vivos, mas não os corpos dos que entretanto foram mortos. Não sabemos como morreram – o Hamas atribui a culpa aos bombardeamentos indiscriminados de Israel. E diz que alguns estão ainda enterrados nos escombros, lavando-se as mãos do crime.
Israel libertou à volta de dois mil palestinianos presos, muitos deles sem nunca terem sido acusados de coisa nenhuma. A não ser a de viverem em Gaza. Será que ao ler isto alguém se pergunta como é possível haver duas mil pessoas presas, sujeitas a todo o tipo de violência, sem nenhum controlo de quem quer que seja, como simples peças de troca, também eles reféns sem direitos nenhuns? 

Como saber se Israel vai respeitar os compromissos assumidos? Nunca aceitou outros antes. Nunca aceitou nem uma das mais de cem resolução da ONU, porque haveria agora de o fazer?
Não há nenhum plano para o estabelecimento de um Estado palestiniano, que muitos dizem ser a única solução possível para o conflito. Há países que reconheceram oficialmente um Estado palestiniano que apenas existe no papel. Onde estavam esses países quando este «acordo de paz» foi negociado?

A América (ou antes a «Magalândia») de Trump conseguiu impô-lo porque só ela detém os instrumentos capazes de fazer parar a guerra: as armas e o dinheiro. Netanyahu aceitou as condições apertado pela pressão interna, pelos que exigiam o regresso dos reféns, por alguns militares que começam a pôr em causa os fins e os meios, e pelas pressões internacionais. O Hamas aceitou (de má vontade) as condições, pressionado pelos países árabes que lhe fornecem as armas e os meios, porque se viu sem saída na frente armada e porque se vê cada vez mais contestado pela própria população de Gaza.

E Trump pode sonhar já com um imenso império imobiliário gerido por si e pela sua família, capaz de transformar Gaza no paraíso balnear idealizado por ele e pelo genro Kushner Ficou estabelecido que o plano de reconstrução de Gaza será orientado por um conselho onde terá assento privilegiado Tony Blair (talvez devido à sua prestação na guerra do Iraque) e será  presidido pessoalmente pelo próprio Trump – uma jogada do género em que ele é mestre.
A «reconstrução» promete: O genro de Trump já se posicionou (e já há muito tempo! Veja-se o que aqui ficou registado há algum tempo. Vão ver se tiverem uns minutos: https://ze-lima.blog/2024/11/15/israel-meu-remorso/ ), o Qatar já percebeu que as oportunidades de negócios e o Boeing 747 que ofereceu a Trump podem afinal valer dividendos ainda mais chorudos. E depois também é verdade… o mais difícil está feito: a demolição prévia está praticamente concluída. Se é questionável que o Exército de Israel seja «o exército mais moral do mundo», como publicamente se apresenta, ele é inquestionavelmente um Exército extremamente eficaz: Gaza está literalmente arrasada, como se vê pelas fotografias que nos vão chegando rompendo todos os bloqueios, apesar de Israel ter começado por se ver livre dos jornalistas e correspondentes internacionais, o que só por si já diz muito das intenções da invasão e da ocupação. Um Exército implacável também: essa destruição deliberada e sistemática apresenta-se como justificada pela necessidade de eliminar os apoios e esconderijos do Hamas. O que não explica é a destruição orientada de escolas, de hospitais, de serviços de apoio social, das instalações de organizações humanitárias. E o que não poderá nunca justificar-se é a destruição deliberada de cerca de oitenta por cento das terras cultiváveis. Gaza ficará dependente da ajuda alimentar durante muitos e muitos anos.
E ainda haverá palestinianos que possam cultivar essas terras se elas puderem alguma vez ser recuperadas? Não sei. Numa sondagem recente feita em Israel, 82 por cento dos inquiridos estavam prontos a aceitar a limpeza étnica de Gaza. E 56 por cento aceitariam o mesmo em relação aos palestinianos que são cidadãos israelitas!
E quem o poderá impedir? Duvido que a indignação internacional só por si o consiga. A únioca coisda qwu talvez o conseguisse seriam sanções económicas nos setores onde elas doem mais. Mas os Governos e os Estados tem razões que o coração desconhece. E as razões do poder e do dinheiro da América podem sobrepôr-se a muita coisa. Já vimos noutros casos que nenhum travão a detém. O desprezo, as humilhações, a prepotência com que Trump trata a Europa e os países que não se vergam à Sua vontade e interesses imperiais são a marca de um poder sem freios.
Mas mesmo assim… 
Quem dirá não ao diabo se por uma vez ele escrever direito por linhas tortas?

Trump parece levar a sério a tarefa de preencher as condições para a atribuição de um prémio que continua a escapar-lhe, depois de ter sido atribuído a outros americanos que ele deve considerar abaixo da Sua dignidade, como Martin Luther King (um ativista pelos direitos cívicos dos negros americanos) e Cordel Hull (um dos fundadores da ONU), porque está a pensar é nos Presidentes americanos que o receberam (Roosevelt, W. Wilson, Carter, Obama, Obama, Obama!). Nunca mostrou grande vocação para salva-vidas, mas se «salvar vidas» é uma das condições…
Ainda há pouco apresentou um extraordinário plano que, a ser posto em prática, poderá salvar muitas vidas em todo o mundo. Numa reunião da elite militar, convocada de todos os cantos do planeta onde a América tem bases militares pelo ministro da defesa (que Ele agora quer que seja “da Guerra”), e em que Trump fez questão em estar também presente, foram apresentados dois projetos decisivos para preparar as tropas para a difícil tarefa de defender a América (o que na gíria local quer dizer, «o mundo») – o Ministro apresentou (e determinou) o seu plano de proibir as barbas, os cortes de cabelo fora do comum, e as grandes barrigas dos militares. Mas Trump foi mais longe! Expôs um plano definitivo de acabar com um dos maiores flagelos mundiais. Nas sua próprias palavras: «Conseguimos uma grande paz através da força. A América é novamente respeitada como país. Com Biden não éramos respeitados. Todos o viam a cair pelas escadas abaixo todos os dias. Todos os dias, o tipo a cair pelas escadas abaixo. Então eu disse isto não é o nosso presidente. Não podemos aceitar isto. Eu sou muito cuidadoso. Sabem como é, quando desço as escadas para… como quando estou numas escadas como estas escadas, sou muito… ando muito devagar. Ninguém tem de bater record nenhum, basta fazer por não cair porque isso dá mau resultado. Alguns dos nossos presidentes caíram e isso tornou-se uma parte do leagdo que nos deixaram. Mas nós não queremos isso, é preciso andar bem e com cuidado. Não temos de bater record nenhum, temos de ter calma. Ter calma quando descemos, mas nada de… não descer as escadas a dançar. Isso, basta pensar no Obama, eu tinha zero respeito por ele como presidente, mas ele descia as escadas a dançar bebop aquelas escadas… Nunca vi uma coisa assim, da da da da da da da, bop, bop, bop, descia assim as escadas, sem se agarrar. Eu dizia, muito bem, eu não quero fazer isso. Estou convencido de que era capaz de o fazer, mas é sempre possível que as coisas corram mal e basta correr mal uma só vez.»
E é digno de se ver aquela solene audiência das mais altas patentes do país, generais, almirantes e sei lá que mais, todos a fitar assombrados o seu comandantes em chefe, o admirável Donald Trump. 
Nunca lhes tinham falado nisso na Academia Militar.

Regresso a Gaza…. Regresso a casa…

Mudar de aldeias

Em Itália andam a vender aldeias ao desbarato. Em Sambuca na Sicília; em Chiaromonte, na Basilicata; em Bonnanaro, na Sardenha, e em muitos outros sítios vendem-se casas a um euro. E com as casas vende-se o sonho de repovoar, reabilitar e revitalizar essas terras pouco menos que abandonadas e que se definham aos poucos em lenta agonia. Claro que um euro é uma maneira de dizer: nas letrinhas pequeninas vem, claro, o resto: os impostos, os registos, e a obrigação de renovar a casa num prazo estabelecido. Mas ainda assim houve muitos que não resistiram ao apelo de uma casinha de postal ilustrado numa aldeia daquelas que já só se vêem nos filmes.

Por aqui ainda não chegamos tão longe, mas não se anda (andou) longe disso. Na serra da Lousã, e noutros sítios de que ouvi falar, vendiam-se ainda há pouco casas, pouco mais que ruínas às vezes, por preços capazes de aliciar muita gente que começa a procurar uma forma de vida mais próxima da natureza e dos ritmos vitais, como às vezes os ouço dizer nas reportagens da têvê. Vimos ressurgir lugares e aldeias, às vezes pela mão de estrangeiros (muitos alemães!) que se apegam à terra, fazem ressurgir profissões e até tradições que não eram deles, mas que viviam nas memórias dos poucos que tinham ficado para trás. Se não fosse isso, muitas dessas aldeias pouco mais seriam hoje do que precisamente essas memórias, que por sua vez já só resistem nos registos de algum estudioso dado a calcorrear os montes, ou tresmalhado de alguma Sardenha natal ou consumido por uma curiosidade sem fronteiras. E que assim as salvam da pior das mortes, do esquecimento.

É que também as aldeias morrem.
Umas de morte violenta, sem apelo – e logo todos lembrarão Vilarinho da Furna, a que uma barragem roubou a vida (e o nome!), ou a aldeia da Luz que o Alqueva apagou para todo o sempre. Outras porém vão-se morrendo numa longa e lenta agonia que se confunde com os mornos dias que desmerecem crónicas e moralidades finais. 
É, ou foi, o caso da aldeia de Alto, na serra algarvia, entregue a um torpor de que não haveria notícia, como tantas vezes acontece, não fora o sociólogo inglês Robin Jenkins ter-se proposto escrever-lhe o testamento num livrinho que nos deixou.

Durante cerca de um milénio os camponeses de Alto, um lugarejo de pouco mais de vinte casas, perto de Alferce, viveram praticamente isolados do resto do mundo, cultivando os mesmos socalcos, irrigados pelos mesmos tanques de pedra que os árabes construíram no século IX, e morando em casas que quase não sofreram alterações desde que foram construídas há séculos. Viviam praticamente daquilo que era produzido no local. As poucas coisas que não conseguiam fabricar ou produzir era preciso trazê-las de burro em viagens de muitas horas. E um burro não carrega mais que seis arrobas de cada vez. O ferro para as ferramentas e para as ferraduras vinha-lhes das minas de Aljustrel, a sete dias de viagem. O arroz vinha de Sabóia a dois dias de caminho. E assim por diante. Tudo o resto era feito com a prata da casa: das plantas faziam cordas, dos juncos e dos vimeiros faziam cestos, do pinho cadeiras e mesas, da cortiça malgas, travessas e sei lá que mais. «Durante um milénio a vida em Alto era quase inteiramente o produto de uma tecnologia limitada que atuava no seio de uma geologia e de um microclima particulares. As pessoas comiam o que cultivavam e criavam os animais que se davam nas mesmas condições». Trabalhavam para manter o nível de subsistência que essas condições lhes permitiam. Praticamente não havia excedentes de produção, até porque não saberiam  o que fazer com eles, se não fosse para oferecer ou para trocas entre amigos e vizinhos. Apenas podiam armazenar os produtos por um tempo limitado e não os conseguiam vender porque o mercado mais próximo ficava muito longe e não havia caminhos praticáveis para lá chegar.
A vida da aldeia permaneceu assim quase inalterada de século para século, regulada pelas estações e as tarefas agrícolas que a cada uma delas cabe: semear, plantar, mondar, colher, apanhar o medronho que cresce espontâneo na serra para fazer aguardente, a matança do porco para salgar e comer durante o resto do ano. E havia que tratar dos socalcos em que assenta toda a produção local e que todos os anos têm de ser reparados, porque é daí que tiram tudo o que precisam: pão, azeite, azeitonas, grão de bico, feijão, castanhas, e sobretudo batatas. Sempre assim, praticamente sem alterações desde a Idade Média, «enquanto no resto do mundo o feudalismo dava lugar ao capitalismo, à revolução indistrial, ao imperialismo moderno e a duas guerras mundiais. As sociedades de consumo produziam comboios, autocarros, automóveis e aviões, eletricidade e todo o tipo de bens de consumo duradouros. À aldeia chegavam notícias de tudo isto pelos relatos de quem vinha de fora, mas o mundo exterior era qualquer coisa de longínquo, muito para além das montanhas.»

Em 1951 todo esse mundo entrou em Alto de roldão.

A construção de uma curta faixa alcatroada de dez quilómetros alterou irreversivelmente o pequeno mundo de Alto. A estrada de Monchique para Alferce foi aberta nesse ano, iniciando um ciclo que nada tinha a ver com a lógica da vida auto-suficiente da aldeia. Muitos dos filhos dos camponeses fizeram-se desde então à estrada, para o litoral dos hotéis, para Lisboa, para a Europa da CEE, como quem assim cortasse o inesperado cordão umbilical que ainda os ligava ao mundo fechado onde sempre tinham vivido. De um dia para o outro, tudo aquilo que antes tinha de ser transportado de burro durante longas horas ou dias pelo velho caminho do tempo dos mouros, pelo meio da serra, chegava-lhes agora pela estrada nova nos quinze minutos que os carros e camiões demoravam desde Monchique. 

De tudo o que a estrada trouxe consigo talvez tenha sido o aparecimento dos adubos químicos a mudança que desencadeou consequências imediatas mais notáveis. Começou um novo ciclo, o ciclo dos adubos, e com ele a produção da batata por exemplo aumentou pelo menos vinte vezes. Pela primeira vez havia um excedente de produção e sobretudo um mercado onde o vender. Os camponeses começaram a ter acesso a bens (e a dinheiro!) que antes lhes estavam completamente vedados. Ao ciclo dos adubos segue-se logo após o ciclo do cimento e o ciclo do plástico que viram do avesso todo o sistema de produção antigo.  O moinho fechou – o trigo era agora moído numa máquina elétrica em Monchique. Deixaram de se fazer os recipientes de barro e o cestos de vime – agora substituídos por baldes de plástico baratos. O chão de tijoleira das casas era agora de cimento, como de cimento passaram a ser os novos tanques de água. As novas condutas de plástico permitiam conduzir a água por terrenos acidentados e tornar desnecessários os velhos canais de pedra que exigiam cuidados incessantes. 

Quando os fertilizantes começam a exigir doses cada vez mais elevadas, o rendimento das batatas diminui, o mercado deixa de absorver toda a produção, e também o dinheiro diminui . Mas a estrada nova traz consigo uma nova solução: é o início de um novo ciclo, o ciclo do eucalipto.
As fábricas de celulose para o fabrico do papel oferecem contratos de 40 anos por parcelas de algumas centenas de hectares de terrenos em plena serra, onde antes só cresciam medronhos. Desbravam os terreno, abrem caminhos, pagam as despesas de plantação e os proprietários recebem vinte e cinco por cento do valor da madeira, sem terem de trabalhar. São poucos os que resistem à tentação. A plantação de eucaliptos é a nova corrida ao ouro. As terras altas da serra valem agora mais do que os estreitos socalcos regados à mão. 
De um momento para o outro passam de uma economia de subsistência, baseada num sistema de reprodução anual para um sistema de reprodução expansiva, de lucro, de acumulação. É um grande salto na maneira de viver e se calhar também na maneira de pensar. Em pouquíssimo tempo, como caudais represos durante séculos que subitamente vêem romperem-se os diques que os retinham, tudo muda de repente.

E possivelmente de forma irreversível: o ciclo dos eucaliptos «varrerá o velho mundo, as pessoas e tudo o resto, até porque as árvores invasoras estão a secar a água preciosa, e só ela torna possível cultivar e regar os socalcos. Os que se encontram na vertente sul da serra de Monchique já estão secos. E é apenas uma questão de tempo até a ribeira que passa na Foz do Açor secar nos meses de verão, tornando impossível viver aí.» O lençol de água das montanhas decresce de ano para ano. As árvores de fruto começam a secar. As hortas mirram. Assim que o nível dessas águas fique abaixo do das nascentes e dos tanques, só se conseguirá regar abrindo poços e puxando a água com bombas de extração. A terra esgotada pelo uso excessivo de fertilizantes pede cada vez mais água e já não consegue reter a humidade. Os socalcos já só servem para as culturas de inverno ou de primavera, e alguns começam a ser abandonados – ou plantados com eucaliptos.

Todo este processo inexorável que aqui fica resumido é exposto e estudado de forma detalhada por Robin Jenkins, o sociólogo inglês de que falei no início. Durante cerca de um ano, em 1976, viveu em Alto, cultivando alguns socalcos arrendados e tomando parte na vida da aldeia, «quase fazendo parte da família», deixando-nos o relato da experiência num livro que tenho estado a citar intermitentemente. Foi publicado em 1979, com tradução de Ana Bastos, na editora Querco entretanto desaparecida, e que durante a sua breve existência, deixem que aqui fique dito, nos deixou alguns poucos mas bons livros, pela mão de Eva Henningsen e de Jaime Reis. Chama-se o livrinho (são só 150 páginas) em português «Morte de uma aldeia portuguesa» – um título bem mais «explicativo» do que «The Road to Alto» [A Estrada para Alto] do original inglês.

É difícil, ao ler o livro, escapar a uma amarga e obscura sensação de que com a morte desta aldeia, e de tantas aldeias como esta, alguma coisa de nós morre também. Obscura certeza essa. A mesma talvez que faz com que Elói e Eulália, dois velhos camponeses se recusem a vender as terras aos eucaliptos, agarrados à vida na serra como sempre a conheceram, contra toda a lógica do progresso e contra a insistência dos filhos, que sabem ler e escrever e que vivem na cidade. Escreve Jenkins: «Uma coisa é certa – eles nunca assinarão um contrato para a cedência aos eucaliptais. Outra coisa é igualmente certa: mal eles morram, os filhos fá-lo-ão. Quando os montes estiverem totalmente cobertos de eucaliptos, isso será o indício de que essa mentalidade rural acabou por morrer.»

Ao ler o rol das devastações levadas a cabo a golpes de progresso e de civilização acelerados numa cultura milenar e que até aí resistiu a tantas mudanças, sentiremos talvez pairar sobre tudo isso uma vaga sensação de perda. Que por sua vez talvez assente numa boa dose de idealização da vida aldeã, de um certo revivalismo dos costumes tradicionais e dos ritmos sazonais de outros tempos que somos levados a crer imunes à alienação da vida urbana onde sentimos que a alma se nos vai. E é muito possível também que com isso se esteja a esquecer uma data de coisas bem reais que aí se podem esconder: uma tradição oral que se alimenta do analfabetismo e da maledicência das terras pequenas, querelas ancestrais e fúteis que dividem comunidades inteiras durante gerações inteiras, uma estranha familiaridade entre a doença e a morte, a predominância dos mitos sobre a inovação, a forte integração e conformismo sociais, o poder prepotente dos patriarcas que quase sempre confundem o amor com os casamentos de conveniência, uma subcultura feita de alcoolismo e de desespero e mais umas quantas coisas de que não falam normalmente as cantigas.

E não é por isso fácil estabelecer o ponto de equilíbrio entre a estabilidade e a previsibilidade da vida tradicional e a inevitabilidade das transformações operadas pela construção de dez quilómetros de estrada alcatroada. E também eu não o saberia dizer. Nunca fui a Alto e não faço ideia do que entretanto aí se passou. Não sei se se terá cumprido a profecia de Robin Jenkins de que «daqui  a 20 anos (estava a escrever em 1976 ou 77) todos os camponeses de Alto terão morrido e a zona estará transformada num gigantesco eucaliptal». Alguém que me esteja a ler e que lá possa ir, que nos conte depois.

Na parte final do livro, Robin prevê que «o próximo investimento local de envergadura será provavelmente o turismo. Alto tem um excelente clima no Verão, a serra é excecionalmente bela e muitas das encostas têm vistas fantásticas», diz ele.
Será esse o ciclo final, o ciclo do turismo? Com o que tem de subreptício, de insinuante, é bem capaz de fazer mudar de aldeia a qualquer um. O turismo, a voracidade de um certo tipo de turismo, poderia ser o ciclo final, capaz de desferir o golpe de misericórdia no que possa sobreviver de genuíno nos sítios onde lhe abrem a porta. E é difícil resistir-lhe, quando já se vendeu tudo o que tinha preço e já só a alma resta. Para quem resistiu até aqui a todas as tentações mais venais será essa talvez a forma mais rápida e eficaz do mudar de aldeias.

Gaza onde não há pão…

Não há como escapar, não há por onde escapar, de uma maneira ou de outra o dia a dia de Gaza em agonia insinua-se no nosso dia a dia. E com isso começamos a entrever a resposta para a pergunta que tantas vezes nos pusemos a propósito de outros tantos crimes igualmente tremendos praticados diante dos olhos de toda a gente: como foi possível? Agora sabemos. Só não sabemos o que havemos de responder quando a pergunta nos for feita a nós. E não poderemos dizer que nada sabíamos. Ainda que a queiramos ignorar, a questão de Gaza vem ter connosco, dia a dia, às vezes da maneira mais inesperada.

Ainda há pouco, numa rua perto de mim. Ia eu a descer da Graça para Lisboa e às tantas reparo em duas meninas dos seus vinte e tal ocupadíssimas a rasgar e a arrancar uns cartazes com que certamente embirravam. Quando me aproximei vi que era um cartaz de uma manifestação pró-Palestina. Não resisti a tentar perceber a razão de tal raiva. Em inglês, disseram: «Somos israelitas». Para elas seria razão bastante e talvez achassem que também para mim o seria. «Mas porquê arrancar os cartazes? Em Israel não há liberdade de expressão?» O que eu fui dizer! Saíram-se com um um «Fuck them all», que não sei como hei de traduzir, mas não deve ser coisa doce. Nesse momento um rapaz que tinha ficado afastado a filmar a ação do comando aproximou-se e disse-lhes «Vamos embora». E foram-se dali com a missão cumprida.

O ódio é uma emoção complexa que não se deslassa com boas palavras, que convoca forças profundíssimas e avassaladoras que dominam por completo os que se deixam possuir por ele. E que ao mesmo tempo arrasa tudo o que lhe surge de permeio. Entre as vagas do mar de ódio justiceiro de Israel e a rocha do ódio cego do Hamas, não há espaço para a vida. Quando tal mar bate em tal rocha quem sofre é quem está de permeio, e que não tem escolha. Gaza não é mais do que o peão de um xadrês que ninguém pode ganhar. Nem parar.

O que há a dizer já foi dito. Seria agora a hora de fazer o que há a fazer. E é daí que nos vem esse sentimento de impotência, de culpa, de indignação e de impotência, de pensar que não podemos, nós, fazer nada.
Pode exigir-se ao Hamas a libertação imediata e incondicional dos reféns cobardemente raptados na incursão de 7 de outubro de 2023. Não é possível pactuar com um crime destes e muito menos aceitar que o resultado desse crime seja agora usado como uma arma. Isso deveria ser indiscutível. Mas poderá discutir-se com o fanatismo cego e surdo?
Pode exigir-se a Israel o fim imediato da matança que o exército prossegue inexorável e indiscriminada contra a população de Gaza. Isso deveria ser indiscutível. Mas poderá discutir-se com tamanha cegueira e surdez ao que há de mais elementar na nossa comum humana condição?

Falei aqui há tempos de uma discussão com uma amiga minha sobre os dois pesos e duas medidas com que normalmente é tratado Israel (https://ze-lima.blog/2024/04/10/dois-pesos-e-duas-medidas/) E de como concordei com ela: Somos mais exigentes com Israel, é verdade. Em nome dos valores que partilhamos (ou dizemos partilhar, e que usamos como argumentos na defesa de Israel). E sobretudo, sobretudo, era o que eu lhe dizia, porque ao criticar Israel tínhamos a noção de que havia a possibilidade de mudar o seu comportamento. Havia a possibilidade de corrigir os seus erros – havia em Israel instâncias, instrumentos capazes de dar ouvidos às críticas. O que não acontece em relação ao Hamas. Havia também em Israel vozes que se levantavam e se faziam ouvir, as vozes dos justos, como dizíamos. 

Havia – mas ainda haverá?
Talvez haja. Ainda há em Israel quem seja capaz de dizer: «Basta. Já matámos o suficiente. Já destruímos o suficiente» e que defenda o direito dos  palestinianos a viver no seu próprio estado, como o fez há pouco Ehud Olmert, primeiro-ministro de Israel antes de Netanyahu, numa entrevista publicada no Expresso (22/8/2025). E quase todas as semanas nas ruas de Telavive tem havido manifestações a exigir o fim da guerra e a demissão de Netanyahu. Serão afinal antissemitas os milhares de israelitas que se manifestam em Telavive, como têm sido consideradas por vários governos cúmplices de interesses inomináveis as inúmeras manifestações em toda a Europa e um pouco por todo o mundo a defender os direitos dos palestinianos? 

Quem ainda hoje questiona o silêncio e a cumplicidade com que grande parte da Europa assistiu às perseguições nazis contra os judeus da Alemanha e da Europa, não pode aceitar o mesmo silêncio e cumplicidade diante dos crimes que se cometem em Gaza. 
Em nosso nome não, há que dizer. 
E há que não nos deixarmos enredar em discussões especiosas sobre que nome dar ao crime: se genocídio, se limpeza étnica, se retaliação desproporcionada, se… O que quer que se lhe chame, é um massacre, uma matança, um crime. Não se trata de uma guerra de palavras entre juristas. Não se trata de um crime que se possa apagar apagando a palavra que o condena.
Isso talvez seja o que acreditam os que andam aí (não sei se serão os do comando que vi a rasgar cartazes…) a apagar as palavras de que não gostam nas paredes de Lisboa.
***
Mais um acrescento: se tiverem ocasião, leiam também um texto aqui publicado há tempos, que parece que não vem a propósito, mas vem : https://ze-lima.blog/2024/02/06/esta-voz-nao-me-sai-da-cabeca/

a árvore do bem e do mal

Isto já foi há tanto tempo que se calhar já poucos se lembrarão de quando Iavé, o Deus da Bíblia, depois de criar os céus e a terra, os animais e as plantas, decidiu criar o homem e a mulher e entregar-lhes o jardim na parte leste do Éden onde poderiam ficar a morar. Era um jardim onde havia de tudo, do bom e do melhor, e de tudo o homem podia comer e servir-se (e a mulher também, imagino, embora no Génesis Iavé apenas fale com o homem e seja quanto ao resto pouco explícito nesta matéria. Será talvez a primeira vez, mas não é certamente a última). 
Comer de tudo não. Porque em letras pequeninas, no fim do contrato havia mais qualquer coisa que o bom do Adão se dispensou de ler e que, como depois se veio a ver, trazia muita água no bico. Dizia a cláusula assim ignorada: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal» (sic). 

Isto passou-se há muito muito tempo e quase de certeza que já todos se esqueceram.
Não eu. E não eu porque praticamente todos os dias, no jardim para onde o meu cão teima em me arrastar, há duas árvores que inevitavelmente me fazem lembrar o mito original e a sina com que carregou toda a humanidade até ao fim dos tempos. Porquê, é o que já contarei. 

Uma dessas árvores nunca cheguei a perceber o que seja. Se como dizem é pelos frutos que se vê a árvore, nunca me foi dado ver em que viriam a tornar-se estes que nunca chegam a amadurecer, se pêssegos, se alperces, se damascos. A outra árvore é uma romãzeira.
Só quem conhece o esplendor de uma romãzeira em flor, o despontar do pequeno embrião do fruto, o crescente rubor que há de (haveria de…) culminar numa verdadeira granada de beleza inexcedível, só esses poderão compreender com que pena, com que amargura, com que revolta fico a olhar os frutos ainda verdes todos espalhados pelo chão, arrancados à toa da árvore que esperava oferecê-los mais tarde a quem passasse. E o pessegueiro (ou o que seja) a mesma coisa, todos os anos a mesma coisa: tudo arrancado, desbaratado sem dó nem piedade.

O jardim é de todos, o que também quer dizer de ninguém que o cuide ou defenda. E todos os anos chega o dia em que no jardim deparo com a mesma maldade inexplicável. Estivesse a romãzeira num jardim a que alguém chamasse seu e, mesmo sem muros ou arame farpado à volta, ninguém lhe poria a mão sem pronta resposta do dono. Muito provavelmente até teria já ali ao pé dela os querubins de espada flamejante que Iavé pôs a guardar o caminho da árvore da vida.
Ninguém me tirou nada que fosse meu, é verdade. E assim me apercebo de que, mais do que o crime, o que me revolta é o que nele há de estúpido e de gratuito. E, mais do que muitas coisas bem piores, é isso no fundo o que mais me deixa às voltas com o que há de insondável e de irredimível nesta maldade sem ódio, quase como se fosse um pecado original, que ninguém cometeu, mas nos coube em sorte como uma espécie de herança genética que não se pode renegar nem combater.

É aqui que agora surge o Jean Némar, meu amigo e confessor, que tem chave da casa e entra e sai a seu bel-prazer. Menos dado a grandes especulações, aproveita  como sempre para me contradizer: «E  é por causa de uma maçã que tu me vens com todo este arrazoado?»
E não, não é. Mas percebo o que ele quer dizer, apesar de não ter ouvido metade do arrazoado. Todo o resto da turma compreendeu claramente que não era propriamente de maçãs ou de romãs que se estava a falar. E sei perfeitamente que, para falar do mal (ou do Mal, com maiúscula e tudo) muito mais haveria por onde se pegar. Basta ver os telejornais num dia qualquer e a qualquer hora. Ou folhear qualquer livro de História, de qualquer época e de qualquer ponto do mundo). Mas não é isso, não estou a falar, desse Mal (chamemos-lhe assim) que sempre aparecerá envolto em álibis e justificações, de uma maneira ou de outra. A Humanidade, julgada por tais exemplos, sempre achará que tudo o que produz resultados, tudo o que melhora o quinhão de alguém, mesmo à custa de outros, não é um Mal é antes um Bem. Um bem pragmático, operacional, se quiserem, mas um bem. E não há guerra nenhuma, nenhum massacre, nenhuma massa de ódio, que não invoque um qualquer contrapeso a justificá-lo. Muito haveria a dizer sobre a matéria, mas hoje não é isso que está no sumário.

É outra coisa: essa maldade difusa, sem nada a justificá-la, quase sem ódio, que vemos cada vez mais presente por todo o lado. Sempre existiu, claro, mas é hoje mais visível, mais difundida, até mais copiada. E de tal modo que nem sequer já hoje nos surpreende como soía. Hoje, a surpresa, o espanto, quase o reservamos para o contrário: um gesto de simpatia inesperada, um aceno espontâneo sem nada que o justifique a não ser partilhar a nossa comum humanidade.

É disso também que de certo modo fala o poeta Manuel Resende, numa anotação irónica sobre o que pode haver de intrigante no desajustamento do nosso olhar sobre esta farsa involuntária em que todos nos vimos metidos (em «O Mundo Clamoroso, Ainda», depois incluiudo em «Poesia Reunida», Edições Cotovia, 2018, pag. 215). Aqui o deixo:

Na auto-estrada

Ainda posso perceber
Esses miúdos nos viadutos
Que atiram pedras aos carros da auto-estrada.
É um gesto eficaz
Que matou alguns caixeiros-viajantes,
E até famílias inteiras,
É pura malvadez
E o mundo precisa de pureza.

Mas como se justificam esses que nos acenam
Com alegria ao passarmos?

O poeta do turno da noite

Hoje, queria apresentar-lhes o Philip Levine. É um poeta americano que acabei de conhecer e achei que também quem isto lê havia de gostar de saber o que ele anda (andou…) a fazer por aqui. 
Conheci-o num artigo de um jornal americano e ao mesmo tempo descobri uma poesia inesperada, que respirava o cheiro acre dos ácidos das grandes fábricas de galvanização da Detroit da década de 1930, o ar envenenado das cadeias de montagem de automóveis, o inferno dos tanques de decapagem. Não é comum um universo poético onde o ácido nítrico, o ácido sulfúrico, os solventes industriais servem de alimento a imagens tão poderosas da alienação do trabalho e da solidão do operário roubado de si próprio pela sua segunda vida nas cadeias de montagem e nos turnos da noite. E no entanto foi esse o mundo onde Levine viveu pelo menos desde os 14 anos de idade quando, depois da morte do pai, teve de alternar a escola com os turnos da noite nas grandes fábricas de Detroit, onde os pais, judeus emigrados (ou fugidos) da Rússia das primeiras décadas do século passado, tinham ido encalhar. Mais tarde conseguiu acabar a escola e veio a licenciar-se (em 1950), mas ainda sem poder escapar ao «trabalho estúpido», como ele lhe chamou, nas linhas de montagem da Cadillac e da Chevrolet ou como condutor de camião na Railway Express, até conseguir dar aulas em algumas universidades e vir a ser professor no departamento de inglês na Universidade da Califórnia de 1958 até 1992, quando se reformou. 

Não é que biografia seja poesia. Por mais invulgar e extraordinária que seja, a experiência pessoal ou a visão do mundo de um autor não é forçosamente uma garantia de boa literatura ou de boa poesia. Pelo menos se se ficar por aí. Serve de raiz onde a poesia vai buscar força para as suas imagens, para dar vida às palavras que usa. Isso sim, mas não muito mais. Como dizia o bom do nosso O’Neill: «Conforme a vida que se tem o verso vem», mas também diz – há que não esquecer – que «se a vida é vidinha, já não há poesia que resista». 

Alguém chamou a Levine «o poeta do turno da noite». É talvez uma fórmula feliz, mas como todas as fórmulas é também uma maneira redutora de dizer as coisas, apenas um princípio de conversa, digamos assim. Mas é uma fórmula que pegou, e que sempre virá ao de cima, sempre que dele se fale. E pegou porque tem uma forte parte da verdade: os versos de Levine trouxeram para o chão da poesia um mundo e as personagens que o habitam que raramente se viam fora das reportagens jornalísticas ou dos documentários politicamente empenhados. A Detroit dos anos 30 – capital do mundo industrial americano, que servia de locomotiva à recuperação da grande crise de 1929 que abalara a nação americana e o resto do mundo – serve de pano de fundo e de alimento à visão poética de Levine, às imagens ainda hoje inesquecíveis das filas de desempregados, das linhas de montagem das «3 grandes» (Chrysler, Ford, General Motors), do mundo desolado e sem esperança da realidade operária da época. Mas só é assim porque na sua visão poética, feita à medida da sua particular história pessoal, avessa aos grandes sentimentos, objetiva e humilde, há uma dimensão que transcende a ideia de classe, do lugar e mesmo do tempo de onde parte.

Desde o primeiro livro (“On the Edge”, 1963), Levine escreveu mais de uma vintena até à sua morte, em 2015, tendo merecido o reconhecimento de alguns dos prémios literários mais importantes dos EUA. Não será um critério definitivo, mas alguma coisa quererá dizer: em 1979, “Ashes” recebeu o Prémio nacional dos críticos literários e em 1980 o Prémio Nacional do Livro; e em 1979, “The Simple Truth” recebeu o Prémio Pulitzer de Poesia. Até agora li apenas um livro dele («What Work Is»), publicado em 1991, que recebeu o Prémio Nacional do Livro, e que foi o livro que mo deu a conhecer. No poema «O que é o trabalho» que dá nome ao livro, um operário numa fila de desempregados à procura de trabalho à porta da Ford pensa ver o irmão uns dez lugares mais à frente. Percebe depois que se enganou, que a essa hora o irmão devia era estar em casa a recuperar das oito horas do turno da noite na Cadillac, e fica a pensar que não o vê há muito tempo, que há muito tempo não lhe diz que pensa nele, que gosta dele. Não por ser novo, ou estúpido, ou egoísta, mas simplesmente porque não sabe o que é o trabalho. É essa poderosa imagem da fla de desempregados, do desencontro das emoções sentidas pelo operário do poema, que dá força à ideia de alienação, do distanciamento que sente em relação a si mesmo, porque não sabe (ou não tem consciência) de como o trabalho lhe rouba a vida, e o rouba a coisas tão naturais e tão óbvias como o amor do irmão.

De certo modo pode dizer-se que a força dos poemas de Levine, assenta nas imagens do mundo real, do mundo operário que retrata, mas vem-lhe acima de tudo de outra coisa, do que não está dito, daquilo que constitui a essência da linguagem poética. E por isso sobrevive ao tempo e ao lugar em que foi escrita. Os operários dos poemas hoje terão sido provavelmente substituídos por robôs, e da Detroit dos anos 30 pouco mais restará que a memória e os retratos dramáticos dos fotógrafos da época, mas o que ficará para sempre, porque tem a ver com o que há em nós de mais profundo e incomunicável, é precisamente esse «não dito» que só a poesia pode trazer ao de cima.

Há neste livro um poema extraordinário («Fear and Fame») que pode servir de resumo à técnica de construção do poema de Levine e a esta dimensão poética, que está para além da simples realidade do retrato. 
O poema descreve passo a passo a descida do operário do turno da noite ao fundo dos tanques de decapagem de uma fábrica de galvanização como uma descida aos infernos empreendida por um Orfeu dos nossos dias, e detalha rigorosamente a receita com que «cozinha» a mistura de solventes que usa como se fosse uma preparação culinária em que os ingredientes fossem ácidos industriais (ácido clorídrico, nítrico, sulfúrico). Ao descrever o equipamento de segurança que o operário tem de vestir, Levine evoca subliminarmente os cavaleiros das gestas antigas, com seus elmos e guantes, de partida para missões quase sagradas e destinadas à Glória, de onde há de voltar com uma mensagem do Reino do Fogo. É precisamente a grandiosidade da gesta, os riscos e perigos que a envolvem, que haverá de dar o sentido da chave do poema, o regresso ao Reino da Luz (o piscar das luzes das instalações industriais), recebido não com aplausos e glória pelos que o esperam, mas antes pela banal indiferença devida ao anonimato das tarefas afinal rotineiras e inglórias que cabem a todos por igual no mundo comum a homens e mulheres como ele.

Copio-o aqui (na tradução que dele fiz) para edificação e gozo de quem me lê. E se gostarem podem pedir mais, que ficará para outra vez, ou para outro livro dele que me chegue às mãos.

Medo e Glória
Meia hora a vestir-me, galochas largas até ao quadril, 
guantes até ao cotovelo, um elmo de plástico
como o dos antigos cavaleiros mas com uma janelinha de vidro
sempre embaciada, e um respiradouro
para poupar os pulmões estragados pelo fumo. Descia 
passo a passo para o mundo sombrio 
do tanque de decapagem e aí preparava 
as novas misturas dos grandes garrafões de ácidos 
que me faziam chegar com cordas – tudo seguindo uma receita 
que não revelava a ninguém e que aprendi com Frank O’Mera 
antes de ele ter ido matar-se a beber 
nos bares da Vernor Highway. Um galão de ácido clorídrico 
a jorrar fumegante das largas bocas de vidro, uma pitada 
de pálido nítrico para levantar fervura, sulfúrico para reduzir, 
metais como adoçantes, solventes como sais, 
até ter a certeza que o guisado fervente estava pronto.
Depois voltar a subir, degrau a degrau majestoso, o herói 
de regresso ao piscar das luzes banais 
do turno intermédio na Feinberg and Breslin’s, 
Tubagens e Galvanizações de Qualidade, trazendo uma mensagem 
do Reino do Fogo. Curiosamente 
ninguém saudava o meu regresso, e eu ficava ali 
de armadura posta enquanto o chuveiro de água fria 
caía sobre mim e os resíduos fumegantes empoçavam 
a meus pés como se fossem leite e neve fundente.
Depois despir tudo de volta às calças e camisa de trabalho, 
os sapatos de rua pretos e meias brancas de algodão, 
reassumir o meu apelido, pôr o Bulova no pulso, 
enfiar de novo a aliança no dedo, e gargarejar com água 
da torneira a desfazer o melhor que podia o amargor.
Por uns quinze minutos ou mais sentava-me em silêncio 
à margem do mundo enquanto as mulheres 
poliam os tubos e acessórios até à pureza reluzente 
pendurados como enfeites de Natal nos suportes
arrastados lentamente em direção aos tanques do meu cozinhado.
Tinha pela frente o segundo cigarro, seguro na mão tremente, 
enquanto absorvia enjoado o calor que aplaca o calor, 
um almoço de duas sanduíches de salame de Génova e queijo suíço 
no espesso pão caseiro feito pela minha tia Tsipie,
e um terceiro cigarro para apagar o gosto dos outros.
A seguir levantar-me e voltar a vestir o traje 
do meu ofício pela segunda vez nessa noite, endurecido 
pela consciência de que descer e remontar 
do outro mundo uma única vez em oito horas é só metade 
do que leva a ser reconhecido num mundo de mulheres e homens.

comércio local (4)

Best Sushi & Poke Restaurant
Cork & Souvenirs
Brunch & Bites – bold brunch, best vibes
Cannabis Store Amsterdam
Jo Trip World
Malba Fromagerie
Zauge Barbershop
Nails & Beauty
Vezo Coffee – Filter coffee only
Funerária Bom-fim

[Apesar do desaparecimento das mercearias, das peixarias e das padarias, o comércio local continua florescente aqui no bairro. Ninguém se pode queixar de falta de pizzerias – só no Largo da Graça e arredores contei hoje 4 recentes. Mas já antes tinha anotado aqui esta exuberância do comércio local, como se pode ver em: https://zelima388727646.wordpress.com/2024/01/18/comercio-local-2/ e: https://zelima388727646.wordpress.com/2023/02/05/comercio-local/ ]

América em casa

É só um supor, mas vamos lá supor que levamos a sério a indignação que por aí vai contra as medidas tomadas pelo Império americano para meter na ordem algumas das satrapias mais recalcitrantes aos seus diktats. A Europa não foi das mais poupadas. E a frustração e a revolta contra o Império explodiu temperamental e enfurecida a prometer por ali le jour de gloire ou, por aqui, marchar contra os canhões que for preciso. E valentes retaliações. Ai ele é isso? Ai querem ir-nos ao bolso? Pois bem, não contem mais connosco, com nenhum de nós, para continuar a consumir os vossos produtos. Aqui em casa acabou o made in América!

E foi um rebuliço por esses supermercados fora. Pode-se imaginar (e imaginar não custa) toda a nossa denodada gente a espiolhar etiquetas para rejeitar tudo o que fosse da origem agora renegada, todos a rebuscar prateleiras à procura de alternativas nossas, muito nossas. Ou pelo menos europeias que também são um bocado nossas. 
Um patriotismo que fica bem, mas que fica caro. E que dá muito muito trabalho!

Veja-se a história deste valoroso bretão que conta num jornal britânico (The Guardian) a odisseia em que se meteu quando decidiu eliminar do seu quotidiano tudo o que cheirava a Magalândia. 
No que toca aos comes e bebes ainda a coisa foi andando: não faltam alternativas para os cereais do pequeno-almoço, para o whisky, para os MacDonalds e Kings Burgers. Até para a Coca-Cola. Também para os consumos que nos consomem na área da higiene, da limpeza, das roupas, etc. Já um pouco mais complicado quando se trata de substituir o Bob Dylan, ou o Springsteen, ou a Aretha Franklin, ou o Miles Davis e mil e um como eles; ou os filmes e as séries que acompanharam a nossa vida ou revemos agora na Netflix.

O problema começou quando chegou à tecnologia em que assenta todo o dia-a-dia dos nossos dias. Torceu-se todo, o desgraçado, para arranjar substitutos para o Gmail, para o Google Maps, para o FaceBook, para o YouTube e todo o resto que invadira e tomara conta da sua vida familiar e social. 

As opções ditadas pela consciência escondem muitas vezes ao nosso olhar superficial o que implicam de penoso, de dispendioso, de complicado. Metade (ou mais!) da nossa vida assenta em hábitos e escolhas de muitos anos. Mudar a nossa bengala cibernética, por exemplo, significa ter de aprender o funcionamento de novos sistemas operativos, novas palavras-passe, novos termos, novas regras… Um inferno. Como depressa percebeu o bom do Jeremy Ettinghausen, que assim se chama o homem de quem estou a falar, e que vive agora (se é que sobreviveu à experiência) a esbravejar no meio do novelo ensarilhado das alternativas europeias ainda verdes. Quando as há. E outras, se não estão verdes, é porque, como as bananas, amadurecem no consumidor. Escapar ao made in America é entrar num mundo desconhecido feito de nomes que ainda nos soam, a nós, americanos involuntários, ou à força, um tanto ou quanto bárbaros, como : Murena fairphone 5, Suunto, Proton mail, Whereby, Openstreetmaps, LibreOffice… Tudo europeu, sim, mas sabe-se lá quantas não o serão à custa de componentes feitos na China, na Ásia mais ou menos americana e noutros sítios, que se calhar nos deveriam merecer os mesmos pruridos de consciência.

Diz o Jeremy que é uma questão de princípio e que…  It’s not a principle if it doesn’t cost you something. E foi esse o preço que se dispôs a pagar para mudar tudo. Tudo? Não. Há coisas que nem assim ele conseguiu mudar, e que tem a ver com o coração da questão: não encontrou nenhum banco que funcione com um sistema de pagamentos que não seja o Visa ou o Mastercard. Como não se inclina para a solução de guardar o dinheiro debaixo do colchão, foi esse o primeiro grande obstáculo em que embateu. Outro foi o sistema de investimentos financeiros, quando pensou em pôr a pensão ao abrigo do omnipresente sistema americano. Fala também timidamente no club de futebol de que é adepto (Arsenal), e que por razões que não quer discutir lhe custaria muito deixar. Mas pelos vistos também aí terá que cortar. Foi comprado pelos americanos. 

Não é fácil des-americanizar o nosso quotidiano quando nele habita o que temos de mais vital, as nossas paixões (e a nossa bolsa!) centro nevrálgico das pulsões e do ambiente amniotico em que vivemos mergulhados. É que a América não ficou quietinha no sítio onde Colombo a encontrou e a deixou. Hoje, a América está em todo o lado. E aqui também. Para mal dos nossos pecados, que agora nos torna tão espinhosa a nobre tarefa patriótica de a despejar daqui de casa
É que não é fácil.
E não é fácil por uma razão muito simples (também por muitas outras mais complicadas, mas que agora não vêm ao caso). É que quando falamos das coisas que consumimos, que importamos, que compramos não estamos apenas a falar do seu valor de uso. Esse é igual para todos e em toda a parte. Tanto nos diz as horas uma respeitável cebola da Reguladora (desde 1872) de Famalicão como o artilhadíssimo Rolex de ouro e diamantes usados pelas socialitas que vêm nas revistas. Mas isso só no que toca a saber que horas são, que é esse o valor de uso de um relógio. O resto – e é aí que bate o ponto – tem muito mais que se lhe diga e agora já não estou a falar apenas de relógios. Além do seu democrático valor de uso, as coisas (chamemos-lhes assim para simplificar) têm também um valor de troca (que não é já o mesmo para todos nem para tudo). E principalmente têm um valor por assim dizer simbólico, que as pode tornar em sinais de pertença, valor esse que varia de pessoa para pessoa, que as consome para se afirmar ou para ser vista como pertencentes a uma tribo, a um clube, a uma classe, a uma casta, a uma tendência da moda (mesmo que passageira). Quantos dos produtos que compramos e exibimos não terão para nós essa única utilidade? E quantos desses produtos (e marcas!!) não serão precisamente americanos e que só por isso os usamos? Poucos serão os que se resignam a vestir umas calças de ganga da Maconde (onde isso lá vai) se puder comprar umas Levi’s 501, é ou não é?

A América não só está em todo o lado como invadiu a nossa vida, as nossas escolhas, e até o mundo mais secreto dos nossos desejos e das nossas fantasias, essa é que é essa.
Mas então não há nada a fazer a não ser fazer o quer o Império nos diz para fazer, sem tornar a nossa vida impossível? É uma pergunta a que só cada qual pode responder. Mas, vamos lá a ver, isto é como nos testes de exame: não é preciso responder a todas para ter positiva. Podemos ir por partes. Pode ser que cada um de nós não esteja à altura de derrubar o Império, mas todos podemos ir metendo uma pedrinha na engrenagem, e atrasar o passo à invasão inexorável, que foi o que fez o pobre do Viriato diante das poderosas legiões. Espero que último este assomo patriótico possa levar toda a nossa gente a cancelar a compra do Tesla que tinham encomendado, ou a rescindir as férias em Miami, ou o inocente hábito de investir na Google e quejandos. Daí para baixo não é tão fácil, e verdade, mas talvez valha a pena tentar. E dá um certo gozo passar uma rasteira à Magalândia.
Que o digam as pessoas cá de casa já convertidas à Pasta Medicinal Couto (agora com flúor, veja-se o luxo) e outras re-descobertas da nossa alma lusa e europeia. É só ir à internet: está cheia de listas dos mais variados produtos para alimentar a vaga de des-americanização que aí anda. Ou não anda?

Há coisas que me deixam na dúvida: aqui no meu bairro da Graça, o comércio local, por exemplo, continua a ignorar as veleidades contestatárias e continua florescente e cada vez mais próximo do modelo importado. Por aqui, não vamos lá.

PS: escreveu-me alguém a perguntar como poderia juntar mais um ao grupo de leitores, ou seja: como subscrever o blog. Pois é ir ao blog no endereço que copio a seguir e depois clicar em “subscrever”.
(link): https://zelima388727646.wordpress.com/
Ou talvez preencher o espaço próprio no fim de cada texto. Não esquecer de indicar o email.
E obrigado. Quantos mais melhor!

Cão Nosso

Acabada a guerra de Troia, ao fim de vinte anos, Ulisses voltou a casa. Disfarçado de mendigo, triste e idoso, sobre os ombros lançou o miserável alforge, cheio de buracos, dependurado de uma corda torcida, empunhando um bastão que o porqueiro Eumeu lhe oferecera. Ninguém o reconheceu. Ninguém? «Um cão que ali jazia, arrebitou as orelhas. / Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio / criara… / Ali jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente; / jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas, / Aí jazia o cão Argos, coberto das carraças dos cães. / Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto, / começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas; / só que não tinha já força para se aproximar do dono.»

Aconteceu isto há quase três mil anos e é com estas palavras (aqui citadas na tradução de Frederico Lourenço) que o aedo Homero faz entrar na literatura ocidental o seu primeiro cão e já a decantada fidelidade que lhe há de ficar colada ao pêlo. O cão e a sua proverbial fidelidade nunca deixará desde aí de ser glosada das mais variadas maneiras em parábolas, fábulas e livros de todos os géneros. Tem alimentado as mais estafadas metáforas e serve até de ilustração a marcas comerciais. No cinema então nem se fala: todos conhecem a Lassie, ou o quase humano Inspetor Max, e uma enfiada de outros cães feitos à nossa imagem e semelhança que entretém as tardes de domingo das televisões de todo o mundo. Acabou por ir dar às histórias piegas ou edificantes ou muito fofinhas dos filmes de animação e até à banda desenhada, onde destaco (não posso deixar de o fazer) o meu preferido Ran-Tan-Plan (não confundir com Ri-Tin-Tin!), com quem, à medida que os anos vão passando, cada vez mais me identifico.

Rafeiros ou de raça, vadios, caçadores, cães de circo, cães de combate, reais ou imaginados, seja como for, não hão de faltar cães a saltitar por essa literatura fora e pelos tempos fora. Quase sempre a roer os ossos dos lugares comuns de que se alimentam, quase sempre colados à imagem dos humanos que lhe servem de molde. Assim é o Nero dos «Bichos» que Miguel Torga nos legou na arca de Noé que procurou mobilar com todo o tipo de bicharada – velho e desprezado como o Argos do Ulisses, mas talvez atanazado por menos carraças, e por bem mais chavões e os estafados predicados que acompanham a espécie desde a sua criação. Valha-nos ao menos o O’Neill e a matilha que ele lançou à solta no digamos assim poema feito de cães: «cão ululante, cão coruscante, / cão magro, tétrico, maldito, / a desfazer-se num ganido, a refazer-se num latido, / cão disparado: cão aqui, / cão além, e sempre cão». Ainda com um verso para o cão estouvado de alegria, até ao verso final a enxotá-los todos: «Sai depressa, ó cão, deste poema!»

De entre toda a cãozoada literária de que agora me estou a lembrar (e que tenha lido) talvez sejam os cães do Jack London de «O Apelo da Selva» os que (incompletamente) mais escapam à pecha em que cai a maior parte dos escritores de atribuir qualidades e sentimentos humanos aos animais que inventam. 
Não é que seja muito diferente do que acontece na chamada vida real. Vemos os cães com olhos humanos e não é estranho que nele projetemos muito daquilo de que somos feitos. Basta ver a maneira como as pessoas falam com eles, como falam deles, os nomes que lhes põem, como os usam para compensar o que sentem ter-lhe sido tirado ou negado e que assim se safam do divã do analista.
Mas nada disso é para aqui chamado. Os cães a que aqui assobiei para a conversa são os dos livros, os inventados. E sobretudo os cães de um livro que traduzi e que deve estar quase quase a aparecer por aí: «Last Days of the Dog-Men» de Brad Watson de quem nunca até agora tinha ouvido falar. E de caminho, também queria falar da Cutelo Edições, que também não conhecia,  sem saber o que andava a perder.

É um livro pequeno, de uma centena de páginas, pouco mais, com oito histórias, todas elas com um cão, ou mais, à trela. Quase todas elas envolvem de uma maneira ou de outra os complicados meandros da relação entre homens e cães ou antes, neste caso, o que essa relação reflete. O cão não é, com uma exceção, a personagem principal de nenhum destes contos, servindo as mais das vezes como âncoras emocionais ou testemunhas silenciosas dos humanos que as povoam: quase sempre às voltas com a falta de significado da vida que lhes coube em sorte, de casamentos em vias de dissolução ou convertidos na relação vagamente incestuosa da convivência continuada. Os cães aparecem aqui como que a lembrar a possibilidade de uma vida diferente, mais livre, mais perto da natureza, das exigências elementares. A começar pela charada do título, que eu, à falta de uma solução clarividente, traduzi à letra (convencido, como ainda estou, que é assim que deve ser) : «Últimos Dias dos Cães-Homens». 
Ressoa aqui um tom de melancolia, que as histórias confirmam, de uma elegia por um mundo que vive os seus últimos dias, um mundo que seria governado pela lealdade, a simplicidade, o amor ditado mais pelo instinto do que pelos cálculos das vantagens mútuas. Ao mesmo tempo há neste título (talvez) a alusão ao esboroamento de uma realidade, a dos estados do sul da América, perpetuada nos clichés dos seus machos viris e dominadores, agora confusos e desarmados, incapazes de lidar com a mudança, a vulnerabilidade, a intimidade das relações a que os seus comportamentos de outros tempos não conseguem adaptar-se.

Watson encontrou o tom ajustado para nos falar deste universo de solidão mal disfarçada, de falta de comunicação, ou de comunicação imperfeita, que a relação homem-cão testemunha e reflete. Escrito num inglês a que vou chamar demótico, «simples e sem adornos» – assim é a vida de um cão, diz o narrador da história do título. Resulta daqui uma prosa, contida, ritmada, despida de qualquer sentimentalismo. E sem ceder à quase irreprimível tentação de romantizar, de idealizar ou de qualquer outra forma (digo? Vou dizer!) antropomorfizar os cães e o comportamento dos cães que albergou nas suas histórias. Um autor que vale a pena conhecer, digo eu, que aqui o li pela primeira vez.

Vale a pena portanto falar da editora e do editor que antes o descobriu: Cutelo Edições, de Pedro Magalhães. Uma pequena editora de Guimarães com um catálogo que aposta em autores que nem sempre se vêem pelos escaparates pagos das grandes livrarias. Essa foi a primeira boa surpresa que este livro me trouxe: ir encontrar longe do mundo dos best-sellers vendidos para todo o mundo em pacotes (compra-se o que se quer, e sob condição o que não se quer) em feiras do livro-espetáculo, um editor que ainda consegue «descobrir» livros e autores, que arrisca nessas descobertas couro, cabelo e cabedais, sim, que as letras dos bancos não têm nada a ver com as dos livros. São até incompatíveis, as mais das vezes. Em resumo, um editor que lê livros, que lê os seus livros e os discute com os tradutores, uma raridade cada vez mais rara, podem crer os que isto lêem.

O livro deve estar a aparecer por aí. Vale o que pesa, vão por mim.

Há claro o problema de quem é pequeno: não tem muitas maneiras de se pôr em bicos de pés, num mundo em que os livros quando nascem não nascem iguais para todos. Não podem contar com fotografias espampanantes dos autores ou autoras divulgadas nas revistas amigas, ou nos sites amigos, ou nos influencers amigos; não podem contar com a referência deferencial dos comentadores televisivos; não podem contar com a cumplicidade interessada dos jornalistas que fazem vender. Podem contar apenas e tão só com a divulgação feita quase um-a-um pela seita semiclandestina dos leitores de livros. E para os encontrar é preciso ir diretamente à página da editora, que se não me engano, é : https://www.facebook.com/cuteloeditora/?locale=pt_PT
Como a Cutelo está associada à editora Maldoror frequenta também as mesmas livrarias independentes (como a Centésima Página, a Flâneur, a Snob), mas também a Almedina e também certas Fnacs. Espero que consigam encontrá-la e aos seus livros num desses sítios, ou então daqui a pouco nas Feiras do Livro que aí vêm.

Isto já mais parece um passeio com o meu cão: sei onde começo, mas não faço ideia para onde me leva. Comecei na Odisseia e já vou na Feira do Livro… Fiquemos por aqui.

um homem da Renascença

Acontece muitas vezes ouvir o nosso bom povo dizer de alguém: temos ali um verdadeiro «homem da Renascença». E neste seu singelo linguajar quer o nosso bom povo dizer que temos ali uma pessoa que se destaca em diversas áreas do conhecimento, das artes e da ciência. Uma pessoa versátil, com uma grande capacidade de aprender e de se adaptar a diferentes contextos, que demonstra interesse e aptidão por uma variedade de atividades. E isto que diz o nosso bom povo, diz também o dicionário que estou a citar, pelo que é muito capaz de ser verdade.

Diga-se a despropósito que embora este tipo de frases feitas fale mais comummente no homem, é muito possível que, afinal, também as mulheres habitem o mesmo planeta e façam coisas bastante idênticas e que por isso – vamos arriscar! – talvez se pudesse dizer também em alguns casos: «uma verdadeira mulher da Renascença». Mas, enfim, não foi isso que passou para os dicionários e como em muitos outros casos retirou-se assim expeditamente da cara do planeta uma das suas metades. Mas lá que ela existe…
Adiante.
Um dos homens que certamente caberia em tal retrato é sem dúvida o Eduardo Veloso. 
Conheci-o de perto, o que não é o que mais importa, neste caso. Também aqui se poderá talvez dizer que a proximidade nos rouba a perspetiva. 
Foi aliás esta a percepção que eu tive há dias ao participar num encontro organizado pela Associação de Professores de Matemática no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que fez com que me surgisse com clareza o retrato que a proximidade me impedia de ver de forma mais completa. Já antes tinha pressentido qualquer coisa de parecido ao ler o artigo da Rita Ponce, publicado na Revista de Educação e Matemática (nº 167, de 2023) e no jornal Observador (29 de julho de 2016). Infelizmente, não disponho dos links nem acesso a estas publicações para vos dar, mas podem ler o texto aqui: https://clippingsme-assets-1.s3.amazonaws.com/cuttingpdfs/2103177/Perfil_ESV_APM2023.pdf
Vale a pena. 

Tem por base várias entrevistas a pessoas que o conheceram, além de uma longa entrevista com o próprio Eduardo, e é de certo modo um retrato dele a corpo inteiro: o matemático dedicado ao ensino da matemática no ensino secundário; o matemático dos «Desafios» (uma rubrica semanal do Público com problemas de matemática); o astrónomo amador que, armado de uns binóculos de andar por casa, descobriu (quase!) um novo cometa; o navegador da aviação numa época pré-computadores e pré-gps, quando os aviões se guiavam pelas estrelas. E também o homem solidário, ativista político a intervir em alguns momentos quentes da resistência à Ditadura.
Durante o tal encontro no Museu da Ciência quase me deu vontade de rir quando vi, na pequena exposição que lá estava com fotos e documentos, a cópia de uma denúncia anónima à Pide, feita por um pobre coitado que dizia querer «colaborar com a justiça». A denúncia, se formos a ver, é ao fim e ao cabo uma homenagem involuntária ao subversivo que denuncia: «diz-se que tem rendimentos (…), mas faz uma vida modestíssima. Diz-se que subsidia organizações ilegais. (…) Entretanto, saibam que é muito seguro e que iludirá qualquer interlocutor menos prevenido.»
Disso tudo fala o artigo-entrevista que referi e por isso digo que é um verdadeiro retrato de corpo inteiro.

A meu ver, porém, há ainda um retrato dele mais íntimo, ou mais profundo, que é a imagem virtual que a obra fotográfica dele reflete. 
É bem certo que as coisas que realmente importam exigem sempre dois olhares para bem as vermos – do direito e do avesso, por dentro e por fora, de longe e de perto. E daí que eu diga também que é nas fotografias do Eduardo Veloso que nos apercebemos mais claramente de uma data de outras coisas, essas que são quase sempre invisíveis aos olhos. Não estou com isto a querer dizer que seja um fotógrafo consagrado (que, na minha opinião, não é); estou a dizer, isso sim, que a fotografia dele é um espelho bastante fiel da maneira como ele via o mundo e a vida: o despojamento do supérfluo, a recusa do decorativo, do efeito fácil, a cumplicidade com a natureza – o reflexo de uma vida, de uma maneira de pensar, assente em grandes panorâmicas, na perspetiva, nas coisas definidas, nítidas até ao infinito, à linha de fuga.

No caso de grande parte das fotografias do Eduardo seria possível aplicar o mesmo método de análise que ele utilizou no estudo que fez dos pintores da Renascença italiana: Para nos mostrar a «invenção da perspetiva» por esses pintores, o Eduardo sobrepõe à imagem do quadro as linhas de perspetiva que lhe estão subjacentes. 
Nesse livro, «Pespectiva linear: arte e geometria no Renascimento», que apenas existe em esboço, e apenas online, o Eduardo procurava explicar o papel pioneiro dos pintores, como Giotto e Piero della Francesca, que com as suas «descobertas» – melhor se diria intuições – antecipam de certo modo o estabelecimento em bases geométricas sólidas daquilo que veio a designar-se perspetiva linear, ou «dos pintores», como também é chamada. Quem sabe? Talvez  ele tivesse de algum modo «gravado» no espírito (e no olhar!) as obras desses pintores quando fotografava aquelas vasta panorâmicas que se estendiam, sem se esfumarem, sempre luminosas, até uma linha de fuga quase no horizonte.

O livro ficou a metade – deixou um esboço, um plano e algumas ideias base. Quem sabe se um dia destes não aparecerá por aí um matemático inspirado que pegue no livro no ponto onde está e o leve por ali fora até ao plano idealizado pelo Eduardo Veloso.

PS: escreveu-me alguém a perguntar como poderia juntar mais um ao grupo de leitores, ou seja: como subscrever o blog. Pois é ir ao blog no endereço que copio a seguir e depois clicar em “subscrever”. endereço (link): https://zelima388727646.wordpress.com/
E obrigado. Quantos mais melhor!

english as she is spoke

Não sei como é pelo resto do país, mas aqui pelos meus lados é já hoje coisa assente: o inglês tornou-se a nossa segunda língua, mesmo sem proclamação oficial. Os mirandeses que me desculpem, mas é um facto. E contra factos não há nenhuma guerra do mirandum que lhe possa pôr termo. É assim.
Desde que o turismo tomou conta disto, todo o isto foi mudando e levando a sua avante. E se a sua vai avante a nossa vai marcha à ré. E é se queremos; não há alternativa. Solução? Se calhar é melhor pôrmo-nos nós também a aprender a língua que afinal por cá se fala. Desaparecem as leitarias e confeitarias de antanho? Pois aí temos o Coffee Lab & Bakery. Queremos qualquer coisinha para entreter o estômago antes do almoço? Mesmo sem pataniscas ou peixinhos da horta, temos aí a Lemongrass Kitchen, ou o Neighbourhood, com seu smashburger & beer, ou o Locals Nomads (full of wine, dizem eles). Se precisamos de arranjar as unhas ou coisas igualmente inadiáveis do mesmo género, temos aí à mão o Look Change Saloon, a Cila Nails and Hair, o Rose Beauty Saloon, ou o Connection Barber Shop… Mesmo as necessidades mais essenciais não ficam sem resposta: é só ir à Oblivion Tattoo Shop. Ou ao Concept Store, que não faço ideia do que seja, mas também cá temos. Assim como temos – e fica tudo dito – a Feels Like Home.

Há dias o Jean Némar, que sempre vai aparecendo, embora cada vez mais raramente, se calhar cansado de tanto cosmopolitismo, ele que vive entre países, contou-me há dias, ia eu a dizer, que  uns senhores turistas o abordaram na rua com um inicial Do-you-speak-English? que o deixou logo avisadinho. Respondeu-lhes que sim, que quando está em Londres ou em Bombaim ou em Boston faz os possíveis por falar English, mas que aqui não era preciso porque a maior parte das pessoas falam português. Isto, dito no seu impecável English que lhe ficou dos anos que passou em Singapura, deixou os americanos (eram americanos) banzados e sem saber se tinham entendido bem. Talvez tenham. E talvez tenham percebido que é sempre arriscado partir do princípio de que todo o mundo deve estar preparado para os entender onde quer que estejam.

Mas… o problema é que são eles que têm razão. A razão dos tempos que correm, é certo, mas é nesses tempos que nós vivemos. E por isso se calhar há que nos irmos habituando, como dizia o outro.
E até calha bem: ia agora mesmo falar de um livrinho que por por tais razões se vai tornando indispensável – um pequeno manual de conversação português-inglês. 

Tem por título «English As She Is Spoke» e a autoria é do nosso injustamente ignorado Pedro Carolino. Está organizado em curtos capítulos que fornecem o vocabulário e as frases indispensáveis para as situações e as necessidades mais correntes de um lusíada em terras infiéis. 
Há um capítulo inicial dedicado a «Frases familiares» (p.e. trazei-me uma faca; assentai-vos ou assente-se; tendes penna e tincta?; deitemo-nos sobre a herva, etc. etc. etc, que são muitas as frases e difícil a escolha), os demais capítulos cobrem algumas das situações e necessidades mais quotidianas: Para dar os bons dias (Wish the good morning!); para fazer uma visita de manhã; do passeio; do jogo; com o alfaiate; com o sapateiro; com o estalajadeiro; para almoçar; para perguntar novidades; para montar a cavallo, etc. etc. que por aqui me fico. Mas não se fiquem vocês se, estando algures, quiserem meter conversa com os nativos do English as she is spoke.

O livrinho tem merecido inúmeras edições desde a sua primeira edição (em 1882, salvo erro) e sempre recebendo os mais calorosos elogios e merecido reconhecimento. A começar por um famoso americano, um especialista do género, de seu nome Samuel Langhorne Clemens, ainda que mais conhecido entre nós por Mark Twain. É dele o prefácio da edição que tenho em mãos. E vale a pena transcrever algumas amostras.

Começa logo assim: «Neste mundo de incertezas, há, em todo o caso, uma coisa que pode ser com razoável confiança dada por assente: e que é a de que este celebrado livrinho de conversação nunca há de morrer enquanto perdurar a língua inglesa. A sua deliciosa e involuntária absurdidade, e a sua encantadora naïveté, são, a seu modo, tão sublimes e inigualáveis como o são as sublimidades de Shakespeare.» Não se fica por aqui, mas procura também afastar qualquer suposição de se tratar de uma mistificação: «O livro foi indubitavelmente escrito com toda a boa fé e profunda seriedade por un honesto e íntegro idiota que julgava saber alguma coisa da língua inglesa (…) Há nele frases, e parágrafos, que nenhuma mera fingida ignorância poderia alguma vez conseguir – nem tão pouco a mais genuína e completa ignorância sem o auxílio da inspiração.» Diz Mark Twain a concluir o prefácio: «Não é possível abrir este livro em qualquer página que seja sem que aí se descubra alguma pérola. E para provar que assim é, vou abri-lo ao acaso e copiar a página em que calhar.» E vá de reproduzir uma página, a servir de exemplo.

Eu, que não conto com a mesma paciência e curiosidade dos leitores, limito-me a meia página, de que só copio a parte em English as she is spoke (embora o português não lhe fique atrás.…) Aqui têm:
«With a hair dresser. // Master hair dresser, you are very lazy. You keep me back at home; I was to go out. If you come not sonner, I shall leave you to. / Sir, I did come in a hurry / Shave me / Yours razors are them well? / Yes, sir / Look to not cup me. / Comb-me quicky; don’t put me so much pomatum. What news tell me? All hair dresser are newsmonger. / Sir, I have no heared any thing. / To morrow be more early; bring me any news. Are you great deal of customers? / I have enough for to maintain-me.»
Bom proveito, pois. Citando verbatim et literatim o autor na apresentação inicial: «We expect then, who the little book that may be worth the acceptation of the studious persons, and especialy of the Youth, at which we dedicate him particularly.»

PS: escreveu-me alguém a perguntar como poderia juntar mais um ao grupo de leitores, ou seja: como subscrever o blog. Pois é ir ao blog no endereço que copio a seguir e depois clicar em “subscrever”. endereço (link): https://zelima388727646.wordpress.com/
E obrigado. Quantos mais melhor!