Fui ontem chamado a dirimir um pleito (desculpem-me o latim, mas assim o exige a solenidade da causa que foi submetida à minha apreciação), uma questão que de há algum tempo divide a nossa nação, o nosso povo e os putos do meu bairro. Lá a dirimi (assim mesmo!) como pude, mas devo dizer que aquilo me encanitou a ponto de me deixar a questionar a relação que apesar de tudo mantenho com esta ditosa pátria minha amada e com os venerandos símbolos por que ela se faz amar.
Levado pelo meu cão, ia eu a passar num jardinzito do bairro quando fui chamado por uns miúdos que lá andavam a brincar. A brincar pensava eu; na verdade estavam mas é às voltas com as questões que mais tarde ou mais cedo todos nos pomos na nossa vida. No caso deles mais para o cedo, mas talvez isso mesmo tornasse maior a instância com que lhes surgia. «Ó senhor!» chamaram. Era eu. E queriam que eu, autoridade que por insondáveis razões teriam por autorizada, desempatasse as opiniões que os dividiam e decidisse se a bandeirinha verde-rubra que um deles tinha na mão era (ou não era…) a bandeira da seleção nacional. Não saberiam nada de quinas e castelos nem de esferas armilares, estou convencido, mas na breve experiência deles (uns dez anitos…) era realmente essa a bandeira que acompanhava os grandes jogos da seleção, pelo menos desde que o entusiasmo e os incitamentos de um treinador (brasileiro) da seleção a desfraldou em todas as janelas e varandas deste nosso torrão lusitano.
Não era por isso de estranhar a dedução simples que os miúdos eram levados a fazer. Outros a fizeram, de outro modo e com intenções menos ingénuas talvez. Lembro-me de um humorista que desenhou a bandeira nacional com uma bola de futebol a substituir os venerandos símbolos das quinas, castelos e esfera armilar e como com isso iam deitando abaixo o Carmo e a Trindade.
Mas se formos a ver bem as coisas é capaz de não ser uma ideia tão destemperada como parece à primeira vista.
A nossa primeiríssima bandeira, a de Dom Afonso Henriques, a da nossa Fundação, era um singelo pano branco com uma cruz azul celeste no meio. Não tínhamos então muito de que nos gabar ou exibir e pegávamos no que mais estava em moda no que toca a bandeiras. Basta ver o que por aí vai de crucificações nas bandeiras das nações da época. Depois, à custa de muita sarrafusca e guerrilhas com sarracenos e castelhanos lá arranjámos as tais quinas e castelos com que engalanar o estandarte. E mais tarde, à custa de Índias, Áfricas e Brasis, lá viria também a tal esfera armilar, que de tão intrincada que é haveria de valer passados tempos bué de negativas em Desenho nas escolas portuguesas.
Jean Némar, meu comparsa e confessor, que quando lhe convém se faz convenientemente passar pelo estrangeiro que não é, assegura-me que num breve inquérito que fez à sua volta nenhum dos portugueses inquiridos soube explicar (e muito menos desenhar!) a consagrada esfera armilar da bandeira. A fonte será suspeita, mas olhem que a conclusão é capaz de não andar muito longe da verdade.
Uma coisa é certa: sem mouros a combater, sem castelhanos a guerrear, idos os fumos da Índia, derretidos os ouros do Brasil, de que grandes feitos podemos hoje gabar-nos? Que glórias cantaremos? Que fará a Europa bradar à terra inteira que Portugal não pereceu?
Os nossos egrégios avós que haviam de guiar-nos, a marchar marchar, contra os bretões, deixaram-nos, afinal, de crista baixa, entre as trincheiras enlameadas da Flandres e com a caminhada cabisbaixa de cinquenta anos a calar a desgraça. E é muito possível que a grande gesta do nosso tempo seja mais, afinal, a que nos emigrou daqui para fora sem armas nem bagagens por esses Pirinéus distantes até franças e araganças, que não teriam pimenta nem canela, mas tinham vacanças e segurança social.
Hoje, sem Condestáveis, sem Gamas, sem Albuquerques, sem qualquer Luís Vaz que se veja, porque não haveremos nós de cantar, hoje, os varões e os feitos que, hoje, mostram ao mundo o esplendor de Portugal? Por esse mundo fora, sem sequer saberem onde fica Portugal, com que palavras nos saúdam os que nos recebem? Pois é: Eusébio! Figo! Pauleta! Ronaldo!… Talvez que os putos da Graça de que falei à entrada não estranhassem muito se vissem o Presidente no 10 de Junho condecorar os melhores marcadores do ano. Quem diz 10 de junho, diz outra data julgada mais apropriada, como a proposta pelo Ederzito que marcou o golo que nos valeu o título de campeão europeu em 2016. Assim como não estranharão ver esses ínclitos goleadores ombrear no Panteão Nacional com as nossas passadas glórias das Letras, das Artes e das Guerras. Pensarão – talvez com razão – que um Eusébio de hoje vale bem um Dom Fuas de outros tempos.
Não sei é se uma bandeira de bola ao centro poderia alguma vez inspirar a lealdade e a bravura de que deu mostras o porta-estandarte Duarte de Almeida, em 1476, na batalha do Toro. Tampouco sei se ainda hoje é assim que ele aparece nos manuais escolares, mas há toda uma geração que provavelmente nunca mais apagará da lembrança a imagem ensanguentada do bravo alferes que, depois de lhe deceparem a mão direita com que empunhava a bandeira, a agarrou com a mão esquerda e que depois de lhe deceparem também essa, «desesperado, toma o estandarte nos dentes, e rasgado, despedaçado, os olhos em fogo, resiste ainda, resiste sempre» até cair morto sob as lançadas dos castelhanos que então caíram sobre ele.
Com menos sangue, e talvez por isso menos memorável, o que temos hoje são coisas como a imagem, que vi já não sei onde, de um pastor que, de bandeira em punho, na solidão dos campos onde pastam as ovelhas, ouve num transístor o relato da final do Euro 2016.
Ou então, vá lá, talvez dê ainda para encontrar o equivalente possível do alferes de outras eras no homem que, depois de cancelado o desfile do 25 de Abril durante o Covid, sobe solitário a avenida da Liberdade em Lisboa de bandeira nacional ao ombro.

