Que dizem uns aos outros os gansos com a incessante grazinada em que passam o tempo? É que não páram – grasna um, outro responde, outro concorda, outro também, e por aí adiante, o tempo todo. Não só os gansos, outra bicharada também, mas eles mereceram a especial atenção de Konrad Lorenz, um estudioso do comportamento dos animais, que passou grande parte da vida a conviver com gansos, na natureza e na sua própria casa. E que «dizem» então os gansos uns aos outros, segundo ele? Isto: «Eu estou aqui. E tu também estás?» Ao que o outro responde: «Eu estou aqui. E tu também estás?» E assim incessantemente.
Se formos a ver bem as coisas, não somos nisto muito diferentes, afinal. É capaz de não andar muito longe disso o que dizem as pessoas que ouvimos no comboio a telefonar para casa a cada estação que passam a dizer onde estão e pouco mais. Ou as «conversas» sussurradas entre a mãe e o filhinho bebé. Ou a troca de posts entre os putos nas redes sociais. As palavras não interessam pelo que dizem, mas sim pela função que cumprem: de afirmar a coesão do grupo, de assegurar a presença, de apaziguar a ansiedade e a inquietação. Como se as palavras deixassem de servir para comunicar uma mensagem e fossem, só por si, a própria mensagem. Ocupam o espaço que de outro modo seria preenchido pelo silêncio, com tudo o que ele pode ter de incerto, de inquietante ou ominoso.
São palavras que preenchem o espaço do que não se diz, ou do que não se quer dizer ou mesmo do que não se tem para dizer: palavras que são verbo de encher.
Um verbo que se conjuga em todos os tempos e em todas as vozes. Não há quem não o decline à sua maneira, quem não desconverse quando a conversa não lhe agrada. Na política então nem se fala: o verbo de encher é usado como um bordão oportuno para pôr ao largo ou iludir as questões mais incómodas. Uma cassete sempre à mão, alguma consabida verborreia que pega nas palavras, que as despe de contexto e de significado, e que as despeja na pausa onde deveria haver uma resposta coerente. Quem não assistiu já a um debate em que sem se definirem os contornos dos conceitos que se usam cada um os puxa para o lado que quer ou lhe convém? Tanto há quem se gabe de ser «contra o sistema», como há quem acuse os outros de serem «contra o sistema», sem que alguém cuide em saber o que se entende por tal palavra. Tanto pode servir para denegrir ou desvalorizar tudo aquilo em que os outros acreditam como para defender o exato contrário. É uma desconversa que se trava no terreno do «toda-a-gente-sabe-o-que-isso-é», sem precisar de maior definição. Pode querer dizer tudo, que o mesmo é não dizer nada. É simplesmente verbo de encher.
Se o verbo de encher é tão usado no debate político é em grande parte porque, de tão indefiníveis e ambíguos, os conceitos que arrasta consigo dispensam-nos (a eles, aos políticos) de uma maior precisão na indicação de alternativas. É por isso em muitos casos a melhor saída para evitar a incomodidade de realidades que, pelo contrário, poderiam facilmente ser definidas e mesmo quantificadas.
Como no caso dos gansos de Lorenz, a linguagem não comunica nada, não pretende comunicar nada – não passa de uma forma automática, quase gerada inconscientemente, do intuito de manter o bando unido e tranquilo. («Eu estou aqui; e tu também estás?»).
Veio-me isto à ideia ao ler um livro de Lorenz que trago entre mãos («O Anel do Rei Salomão»). Lorenz está sempre a prevenir que nada permite qualquer comparação entre a «linguagem» dos animais e a fala humana. Ao contrário de nós, que temos de aprender a falar, nos animais a «linguagem» é uma caraterística fixada geneticamente, desprovida de conteúdo simbólico e totalmente inconsciente. «A semelhança superficial entre os sons produzidos pelos animais e a linguagem humana diminui ainda mais à medida que se vai tornando claro que o animal, com todos estes sons e movimentos que exprimem as suas emoções, não tem de maneira nenhuma qualquer intenção consciente de influenciar os seus iguais.» É uma «fala» sem mensagem, porque a mensagem é a própria fala.
E foi assim que o bom do Konrad Lorenz, sem que tal fosse a sua intenção, me deixou a pensar em muito do que ouço nos políticos que ouço. Mas também na oculta função da linguagem como algumas vezes a usamos. E nisso somos todos iguais.
Todos não: o meu cão Chip sabe muito bem o que quer e arranja sempre maneira de me dizer o que quer. Mas ele não leu o Konrad Lorenz. Ou então é que usa algum anel semelhante ao do Rei Salomão que – diz a lenda – lhe dava o poder de entender os animais.

O Chip a comer azeitonas? Boas Festas, Chip e Família!
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Não são azeitonas, pá! A cara chateada dele é porque os biscoitos (são biscoitos de cão!) são poucachinhos. Tive que o ouvir.
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Amigo Zé,
Amei a crónica e adorei ver o meu lindo amigo Chip! Que lindo está e petisqueiro, a comer um petisco com um bom copinho de tinto. Ah, ele sabe viver! 🙂
Beijinhos e Festas Felizes para todos os 3 humanos mais os outros 3 com patas
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