O poeta do turno da noite

Hoje, queria apresentar-lhes o Philip Levine. É um poeta americano que acabei de conhecer e achei que também quem isto lê havia de gostar de saber o que ele anda (andou…) a fazer por aqui. 
Conheci-o num artigo de um jornal americano e ao mesmo tempo descobri uma poesia inesperada, que respirava o cheiro acre dos ácidos das grandes fábricas de galvanização da Detroit da década de 1930, o ar envenenado das cadeias de montagem de automóveis, o inferno dos tanques de decapagem. Não é comum um universo poético onde o ácido nítrico, o ácido sulfúrico, os solventes industriais servem de alimento a imagens tão poderosas da alienação do trabalho e da solidão do operário roubado de si próprio pela sua segunda vida nas cadeias de montagem e nos turnos da noite. E no entanto foi esse o mundo onde Levine viveu pelo menos desde os 14 anos de idade quando, depois da morte do pai, teve de alternar a escola com os turnos da noite nas grandes fábricas de Detroit, onde os pais, judeus emigrados (ou fugidos) da Rússia das primeiras décadas do século passado, tinham ido encalhar. Mais tarde conseguiu acabar a escola e veio a licenciar-se (em 1950), mas ainda sem poder escapar ao «trabalho estúpido», como ele lhe chamou, nas linhas de montagem da Cadillac e da Chevrolet ou como condutor de camião na Railway Express, até conseguir dar aulas em algumas universidades e vir a ser professor no departamento de inglês na Universidade da Califórnia de 1958 até 1992, quando se reformou. 

Não é que biografia seja poesia. Por mais invulgar e extraordinária que seja, a experiência pessoal ou a visão do mundo de um autor não é forçosamente uma garantia de boa literatura ou de boa poesia. Pelo menos se se ficar por aí. Serve de raiz onde a poesia vai buscar força para as suas imagens, para dar vida às palavras que usa. Isso sim, mas não muito mais. Como dizia o bom do nosso O’Neill: «Conforme a vida que se tem o verso vem», mas também diz – há que não esquecer – que «se a vida é vidinha, já não há poesia que resista». 

Alguém chamou a Levine «o poeta do turno da noite». É talvez uma fórmula feliz, mas como todas as fórmulas é também uma maneira redutora de dizer as coisas, apenas um princípio de conversa, digamos assim. Mas é uma fórmula que pegou, e que sempre virá ao de cima, sempre que dele se fale. E pegou porque tem uma forte parte da verdade: os versos de Levine trouxeram para o chão da poesia um mundo e as personagens que o habitam que raramente se viam fora das reportagens jornalísticas ou dos documentários politicamente empenhados. A Detroit dos anos 30 – capital do mundo industrial americano, que servia de locomotiva à recuperação da grande crise de 1929 que abalara a nação americana e o resto do mundo – serve de pano de fundo e de alimento à visão poética de Levine, às imagens ainda hoje inesquecíveis das filas de desempregados, das linhas de montagem das «3 grandes» (Chrysler, Ford, General Motors), do mundo desolado e sem esperança da realidade operária da época. Mas só é assim porque na sua visão poética, feita à medida da sua particular história pessoal, avessa aos grandes sentimentos, objetiva e humilde, há uma dimensão que transcende a ideia de classe, do lugar e mesmo do tempo de onde parte.

Desde o primeiro livro (“On the Edge”, 1963), Levine escreveu mais de uma vintena até à sua morte, em 2015, tendo merecido o reconhecimento de alguns dos prémios literários mais importantes dos EUA. Não será um critério definitivo, mas alguma coisa quererá dizer: em 1979, “Ashes” recebeu o Prémio nacional dos críticos literários e em 1980 o Prémio Nacional do Livro; e em 1979, “The Simple Truth” recebeu o Prémio Pulitzer de Poesia. Até agora li apenas um livro dele («What Work Is»), publicado em 1991, que recebeu o Prémio Nacional do Livro, e que foi o livro que mo deu a conhecer. No poema «O que é o trabalho» que dá nome ao livro, um operário numa fila de desempregados à procura de trabalho à porta da Ford pensa ver o irmão uns dez lugares mais à frente. Percebe depois que se enganou, que a essa hora o irmão devia era estar em casa a recuperar das oito horas do turno da noite na Cadillac, e fica a pensar que não o vê há muito tempo, que há muito tempo não lhe diz que pensa nele, que gosta dele. Não por ser novo, ou estúpido, ou egoísta, mas simplesmente porque não sabe o que é o trabalho. É essa poderosa imagem da fla de desempregados, do desencontro das emoções sentidas pelo operário do poema, que dá força à ideia de alienação, do distanciamento que sente em relação a si mesmo, porque não sabe (ou não tem consciência) de como o trabalho lhe rouba a vida, e o rouba a coisas tão naturais e tão óbvias como o amor do irmão.

De certo modo pode dizer-se que a força dos poemas de Levine, assenta nas imagens do mundo real, do mundo operário que retrata, mas vem-lhe acima de tudo de outra coisa, do que não está dito, daquilo que constitui a essência da linguagem poética. E por isso sobrevive ao tempo e ao lugar em que foi escrita. Os operários dos poemas hoje terão sido provavelmente substituídos por robôs, e da Detroit dos anos 30 pouco mais restará que a memória e os retratos dramáticos dos fotógrafos da época, mas o que ficará para sempre, porque tem a ver com o que há em nós de mais profundo e incomunicável, é precisamente esse «não dito» que só a poesia pode trazer ao de cima.

Há neste livro um poema extraordinário («Fear and Fame») que pode servir de resumo à técnica de construção do poema de Levine e a esta dimensão poética, que está para além da simples realidade do retrato. 
O poema descreve passo a passo a descida do operário do turno da noite ao fundo dos tanques de decapagem de uma fábrica de galvanização como uma descida aos infernos empreendida por um Orfeu dos nossos dias, e detalha rigorosamente a receita com que «cozinha» a mistura de solventes que usa como se fosse uma preparação culinária em que os ingredientes fossem ácidos industriais (ácido clorídrico, nítrico, sulfúrico). Ao descrever o equipamento de segurança que o operário tem de vestir, Levine evoca subliminarmente os cavaleiros das gestas antigas, com seus elmos e guantes, de partida para missões quase sagradas e destinadas à Glória, de onde há de voltar com uma mensagem do Reino do Fogo. É precisamente a grandiosidade da gesta, os riscos e perigos que a envolvem, que haverá de dar o sentido da chave do poema, o regresso ao Reino da Luz (o piscar das luzes das instalações industriais), recebido não com aplausos e glória pelos que o esperam, mas antes pela banal indiferença devida ao anonimato das tarefas afinal rotineiras e inglórias que cabem a todos por igual no mundo comum a homens e mulheres como ele.

Copio-o aqui (na tradução que dele fiz) para edificação e gozo de quem me lê. E se gostarem podem pedir mais, que ficará para outra vez, ou para outro livro dele que me chegue às mãos.

Medo e Glória
Meia hora a vestir-me, galochas largas até ao quadril, 
guantes até ao cotovelo, um elmo de plástico
como o dos antigos cavaleiros mas com uma janelinha de vidro
sempre embaciada, e um respiradouro
para poupar os pulmões estragados pelo fumo. Descia 
passo a passo para o mundo sombrio 
do tanque de decapagem e aí preparava 
as novas misturas dos grandes garrafões de ácidos 
que me faziam chegar com cordas – tudo seguindo uma receita 
que não revelava a ninguém e que aprendi com Frank O’Mera 
antes de ele ter ido matar-se a beber 
nos bares da Vernor Highway. Um galão de ácido clorídrico 
a jorrar fumegante das largas bocas de vidro, uma pitada 
de pálido nítrico para levantar fervura, sulfúrico para reduzir, 
metais como adoçantes, solventes como sais, 
até ter a certeza que o guisado fervente estava pronto.
Depois voltar a subir, degrau a degrau majestoso, o herói 
de regresso ao piscar das luzes banais 
do turno intermédio na Feinberg and Breslin’s, 
Tubagens e Galvanizações de Qualidade, trazendo uma mensagem 
do Reino do Fogo. Curiosamente 
ninguém saudava o meu regresso, e eu ficava ali 
de armadura posta enquanto o chuveiro de água fria 
caía sobre mim e os resíduos fumegantes empoçavam 
a meus pés como se fossem leite e neve fundente.
Depois despir tudo de volta às calças e camisa de trabalho, 
os sapatos de rua pretos e meias brancas de algodão, 
reassumir o meu apelido, pôr o Bulova no pulso, 
enfiar de novo a aliança no dedo, e gargarejar com água 
da torneira a desfazer o melhor que podia o amargor.
Por uns quinze minutos ou mais sentava-me em silêncio 
à margem do mundo enquanto as mulheres 
poliam os tubos e acessórios até à pureza reluzente 
pendurados como enfeites de Natal nos suportes
arrastados lentamente em direção aos tanques do meu cozinhado.
Tinha pela frente o segundo cigarro, seguro na mão tremente, 
enquanto absorvia enjoado o calor que aplaca o calor, 
um almoço de duas sanduíches de salame de Génova e queijo suíço 
no espesso pão caseiro feito pela minha tia Tsipie,
e um terceiro cigarro para apagar o gosto dos outros.
A seguir levantar-me e voltar a vestir o traje 
do meu ofício pela segunda vez nessa noite, endurecido 
pela consciência de que descer e remontar 
do outro mundo uma única vez em oito horas é só metade 
do que leva a ser reconhecido num mundo de mulheres e homens.

5 thoughts on “O poeta do turno da noite

  1. Caro Zé Belo comentário. Eu distinguiria entre o valor poético da escrita e o interesse documental das condições operárias da época. A descrição fascina, mas demasiado amarrada à referência, pouco a transcende. grande abraço nuno

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  2. Ok, não consegui ler no Outlook, mas li no site. Excelente.
    As condições de trabalho nos USA continuaram depois da II Grande Guerra e as desigualdades aumentaram assustadoramente. O sonho americano já então era uma ilusão. Lembro os Contos I de John Cheever, que traduziste.

    https://www.ics.ulisboa.pt/

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