Acontece muitas vezes ouvir o nosso bom povo dizer de alguém: temos ali um verdadeiro «homem da Renascença». E neste seu singelo linguajar quer o nosso bom povo dizer que temos ali uma pessoa que se destaca em diversas áreas do conhecimento, das artes e da ciência. Uma pessoa versátil, com uma grande capacidade de aprender e de se adaptar a diferentes contextos, que demonstra interesse e aptidão por uma variedade de atividades. E isto que diz o nosso bom povo, diz também o dicionário que estou a citar, pelo que é muito capaz de ser verdade.
Diga-se a despropósito que embora este tipo de frases feitas fale mais comummente no homem, é muito possível que, afinal, também as mulheres habitem o mesmo planeta e façam coisas bastante idênticas e que por isso – vamos arriscar! – talvez se pudesse dizer também em alguns casos: «uma verdadeira mulher da Renascença». Mas, enfim, não foi isso que passou para os dicionários e como em muitos outros casos retirou-se assim expeditamente da cara do planeta uma das suas metades. Mas lá que ela existe…
Adiante.
Um dos homens que certamente caberia em tal retrato é sem dúvida o Eduardo Veloso.
Conheci-o de perto, o que não é o que mais importa, neste caso. Também aqui se poderá talvez dizer que a proximidade nos rouba a perspetiva.
Foi aliás esta a percepção que eu tive há dias ao participar num encontro organizado pela Associação de Professores de Matemática no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que fez com que me surgisse com clareza o retrato que a proximidade me impedia de ver de forma mais completa. Já antes tinha pressentido qualquer coisa de parecido ao ler o artigo da Rita Ponce, publicado na Revista de Educação e Matemática (nº 167, de 2023) e no jornal Observador (29 de julho de 2016). Infelizmente, não disponho dos links nem acesso a estas publicações para vos dar, mas podem ler o texto aqui: https://clippingsme-assets-1.s3.amazonaws.com/cuttingpdfs/2103177/Perfil_ESV_APM2023.pdf?
Vale a pena.
Tem por base várias entrevistas a pessoas que o conheceram, além de uma longa entrevista com o próprio Eduardo, e é de certo modo um retrato dele a corpo inteiro: o matemático dedicado ao ensino da matemática no ensino secundário; o matemático dos «Desafios» (uma rubrica semanal do Público com problemas de matemática); o astrónomo amador que, armado de uns binóculos de andar por casa, descobriu (quase!) um novo cometa; o navegador da aviação numa época pré-computadores e pré-gps, quando os aviões se guiavam pelas estrelas. E também o homem solidário, ativista político a intervir em alguns momentos quentes da resistência à Ditadura.
Durante o tal encontro no Museu da Ciência quase me deu vontade de rir quando vi, na pequena exposição que lá estava com fotos e documentos, a cópia de uma denúncia anónima à Pide, feita por um pobre coitado que dizia querer «colaborar com a justiça». A denúncia, se formos a ver, é ao fim e ao cabo uma homenagem involuntária ao subversivo que denuncia: «diz-se que tem rendimentos (…), mas faz uma vida modestíssima. Diz-se que subsidia organizações ilegais. (…) Entretanto, saibam que é muito seguro e que iludirá qualquer interlocutor menos prevenido.»
Disso tudo fala o artigo-entrevista que referi e por isso digo que é um verdadeiro retrato de corpo inteiro.
A meu ver, porém, há ainda um retrato dele mais íntimo, ou mais profundo, que é a imagem virtual que a obra fotográfica dele reflete.
É bem certo que as coisas que realmente importam exigem sempre dois olhares para bem as vermos – do direito e do avesso, por dentro e por fora, de longe e de perto. E daí que eu diga também que é nas fotografias do Eduardo Veloso que nos apercebemos mais claramente de uma data de outras coisas, essas que são quase sempre invisíveis aos olhos. Não estou com isto a querer dizer que seja um fotógrafo consagrado (que, na minha opinião, não é); estou a dizer, isso sim, que a fotografia dele é um espelho bastante fiel da maneira como ele via o mundo e a vida: o despojamento do supérfluo, a recusa do decorativo, do efeito fácil, a cumplicidade com a natureza – o reflexo de uma vida, de uma maneira de pensar, assente em grandes panorâmicas, na perspetiva, nas coisas definidas, nítidas até ao infinito, à linha de fuga.
No caso de grande parte das fotografias do Eduardo seria possível aplicar o mesmo método de análise que ele utilizou no estudo que fez dos pintores da Renascença italiana: Para nos mostrar a «invenção da perspetiva» por esses pintores, o Eduardo sobrepõe à imagem do quadro as linhas de perspetiva que lhe estão subjacentes.
Nesse livro, «Pespectiva linear: arte e geometria no Renascimento», que apenas existe em esboço, e apenas online, o Eduardo procurava explicar o papel pioneiro dos pintores, como Giotto e Piero della Francesca, que com as suas «descobertas» – melhor se diria intuições – antecipam de certo modo o estabelecimento em bases geométricas sólidas daquilo que veio a designar-se perspetiva linear, ou «dos pintores», como também é chamada. Quem sabe? Talvez ele tivesse de algum modo «gravado» no espírito (e no olhar!) as obras desses pintores quando fotografava aquelas vasta panorâmicas que se estendiam, sem se esfumarem, sempre luminosas, até uma linha de fuga quase no horizonte.
O livro ficou a metade – deixou um esboço, um plano e algumas ideias base. Quem sabe se um dia destes não aparecerá por aí um matemático inspirado que pegue no livro no ponto onde está e o leve por ali fora até ao plano idealizado pelo Eduardo Veloso.


PS: escreveu-me alguém a perguntar como poderia juntar mais um ao grupo de leitores, ou seja: como subscrever o blog. Pois é ir ao blog no endereço que copio a seguir e depois clicar em “subscrever”. endereço (link): https://zelima388727646.wordpress.com/
E obrigado. Quantos mais melhor!
Obrigado!
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Muito obrigado, meu caro Zé Lima, pela partilha deste belo texto, que tão bem homenageia o nosso Eduardo Veloso. Gostei muito de o ler. Evidentemente, também gostei muito de te ter encontrado (finalmente!). Um grande abraço e até breve (espero). Zé Paulo
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