Dizem-me que há em Jerusalém um jardim onde plantaram mais de duas mil árvores a que foi dado o nome de «Jardim dos Justos entre as Nações». Cada árvore tem o nome de uma das muitas pessoas que durante a guerra na Europa prestaram ajuda aos judeus perseguidos pelos nazis. Todos esses que com isso puseram em risco as suas próprias vidas, salvaram ao mesmo tempo muitas mais. Nenhum deles era judeu; mas todos eles achavam que os judeus eram seres humanos que cabiam na sua quota de responsabilidade enquanto seres humanos. Os gestos destas pessoas ofereciam um contraste flagrante no meio da corrente de indiferença e de antissemitismo que prevalecia entre as populações europeias durante o Holocausto.
Depois da guerra, agora senhores de um país a que podiam chamar seu, os perseguidos de ontem quiseram com este jardim homenagear estes protetores desinteressados e a coragem daqueles que se mostraram sensíveis ao sofrimento de um povo indefeso.
Muito tempo passou entretanto. O suficiente pelo menos para que muito disto vá caindo num morno esquecimento. Hoje, contam-se pelos dedos os sobreviventes do Holocausto. E muita coisa mudou também em Israel: é hoje um país poderoso, dotado de um exércido dos mais poderosos do mundo, armado pela maior potência do mundo. As sucessivas vagas dos judeus recém-chegados, sobretudo depois do fim do império soviético, trazem consigo outras memórias, a dos pogroms estalinistas e das perseguições antissemitas nesses países. O Holocausto tornou-se em grande parte uma memória que vive nos livros da escola e no museu do Holocausto de Jerusalém. As árvores do Jardim dos Justos lá estão ainda. Será que também a memória que evocam viverá também?
Hoje, quando vemos o exército de Israel perseguir, esmagar, massacrar, exterminar sistematicamente um povo inteiro, não será a hora de perguntarmos também: Onde estão os Justos de Israel?
Hão de responder-nos (muitos) que esse é o preço necessário a pagar pelo resgate das vidas inocentes detidas pelos fanáticos do Hamas, que dominam o território de Gaza e usam as populações inocentes (se é que há inocentes, dirão também) como arma e escudo. Mas, mesmo assim, poderemos perguntar ainda: E que justificação haverá então para os crimes que o exército de Israel comete diariamente, metodicamente, nas terras ocupadas da Cisjordânia (não em Gaza) onde o Hamas não domina? Que há de justificar então a perseguição organizada, os controlos de pessoas e de movimentos, a destruição de tantas oliveiras e das culturas dos camponeses, a demolição de casas e a expulsão forçada das pessoas que aí vivem? Estes castigos coletivos não fazem lembrar nada a quem alguma vez ouviu as histórias do gueto de Varsóvia?
Sei que há outras vozes (poucas) que em Israel se ouvem a assumir a sua quota de responsabilidade enquanto seres humanos, acima do ódio nacionalista (e até racista) que é o que mais se faz ouvir. Poucas que sejam, porém, são ainda assim o que resta de decência, de humanidade, e de esperança em Israel.
São vozes como as do escritor Amos Oz, de Gideon Levy e outros jornalistas do diário Haaretz, do movimento Peace Now, do grupo Standing Together, aqueles de que ouço falar, outros haverá. Ouvem-se aqui e ali (mas se calhar mais aqui do que ali) escritores e intelectuais judeus a condenarem as atuações do exército de Israel.
A continuação da guerra e dos crimes que a coberto dela se cometem começa a corroer a indiferença.
Há pouco tempo, no dia da Memória do Holocausto (24 de Abril), três das raras sobreviventes do terror nazi postaram-se à entrada do memorial do Holocausto onde decorriam as comemorações oficiais com um cartaz e uma mensagem clara: «Se perdemos a nossa compaixão pelo outro, perdemos a nossa humanidade.» Uma delas contou ter chorado ao ler a notícia sobre uma criança de Gaza que perdeu os dois braços num bombardeamento israelita e que ao acordar a primeira coisa que fez foi virar-se para a mãe e perguntar: «Como te vou abraçar agora?»
Ao mesmo tempo em Telavive milhares de pessoas manifestavam-se contra a guerra e a limpeza étnica que prossegue em Gaza. Algumas descendentes de sobreviventes dos campos de extermínio nazis, afrontando insultos e agressões, vestidas de negro, empunhavam fotografias de crianças palestinianas mortas nos bombardeamentos, e exibiam panelas vazias a lembrar a fome a que Israel condena os sobreviventes de Gaza com o bloqueio que impõe à ajuda humanitária.
Talvez tenha chegado a hora de começar a registar os nomes destes que hão de um dia representar a consciência de Israel, os Justos que souberam levantar-se de entre a indiferença e afrontar os riscos que isso representa hoje em Israel.
Talvez esteja a chegar a hora de começar a plantar as árvores de um novo jardim. Desta vez, dedicado aos Justos de Israel.
Haverá aí uma árvore para Yotam Vilk, o soldado de um esquadrão de blindados, que se recusa continuar a lutar depois de ver assassinar a sangue frio um adolescente palestiniano desarmado, cansado, como ele diz, por «estarem ali sem verem os palestinianos como pessoas. De ver coisas que estão para lá dos limites éticos, de ver como os palestinianos são indiscriminadamente mortos e as casas destruídas. De ver soldados (do proclamado «exército mais ético do mundo») a saquearem e a vandalizarem residências». Tudo isto acontece enquanto o Governo fala cada vez menos da libertação dos reféns e cada vez mais da expulsão dos palestinianos, ao mesmo tempo que negoceia a instalação das populações deslocadas, agora em «condições humanas e dignas» noutros países (Etiópia, por exemplo). O objetivo cada vez mais explícito é transformar Gaza num paraíso balnear onde possam viver em paz os colonos que aspiram à expansão do seu espaço vital.
Já em tempos aqui se falou neste caso, mas os que chegaram atrasados poderão ler em: https://zelima388727646.wordpress.com/wp-admin/post.php?post=1136&action=edit
Nesse novo jardim dos Justos deverá também haver uma árvore com o nome de Yuval Green, um jovem médico de 27 anos, que abandonou o seu posto em Gaza, incapaz de viver com o que tinha visto: soldados a incendiarem casas, a participar em saques à procura de contas de oração para levarem como recordações.
Uma árvore também com o nome de Ishai Menuchim do movimento de soldados (Yesh Gvul) que recusam participar nos combates em Gaza e que são a parte visível de um movimento crescente de revolta das consciências.
Haverá árvores com nomes como o de Veronika Cohen, hoje com 80 anos, nascida no gueto de Budapeste, que ao falar nas comemorações do Holocausto disse: «Acho que não é justo lembrar o nosso sofrimento sem reconhecer o sofrimento de Gaza»; ou o nome de Ruth Vleeschhouwer Falak, de 89 anos, que sobreviveu à ocupação nazi da Holanda, e que hoje diz: «Na década de 1930, se os alemães se tivessem levantado contra o partido nazi, talvez eles não tivessem conseguido fazer o que fizeram connosco.»
Há mais de duas mil árvores no atual Jardim dos Justos entre as Nações.
Quantas haverá num futuro Jardim dos Justos de Israel?

Placa a assinalar o local onde se encontra a árvore do português Aristides Sousa Mendes no Jardim dos Justos, em Jerusalém