Heróis sem medalha

Que terá acontecido ao grupo de amigos holandeses que protegeram Anne Frank do terror nazi?
Todos conhecemos mais ou menos a história de Anne Frank, se calhar teremos até lido o diário que escreveu durante o tempo em que viveu escondida com a família (de julho de 42 a agosto de 44) num anexo secreto, criado com a cumplicidade dos amigos. Até que uma denúncia anónima fez com que fossem todos presos pela polícia secreta alemã (Gestapo). 
Conhecemos menos, porém, ou não conhecemos de todo, a história dos amigos que daquele modo lhes permitiu sobreviverem isolados do mundo e da curiosidade dos vizinhos e da Gestapo.

Era preciso coragem. 
Afrontar as imposições das forças ocupantes dava direito a prisão e castigo certo. Os invasores nazis condenavam quem prestasse qualquer ajuda aos judeus perseguidos, muitos deles fugidos da Alemanha, na esperança de encontrarem refúgio na vizinha Holanda, como era o caso da família Frank. Os amigos de Otto Frank, o pai de Anne, não terão sido os únicos a mostrar essa coragem. Outros houve certamente, mas talvez o caso deles se tenha tornado mais conhecido pela notoriedade que involuntariamente lhes deu uma menina judia de treze anos quando o diário dela, escondido por um dos seus salvadores, acabou por ser publicado depois da guerra acabar. 

Mas também o denunciante anónimo que levou à prisão dos refugiados do anexo secreto não foi caso único.
Em 2025, no início do ano, o Governo holandês tornou públicos os documentos secretos dos arquivos oficiais sobre as pessoas que tinham sido investigadas por colaboração com as forças nazis durante a ocupação da Holanda, de 1940 a 1945. Foram assim revelados os nomes de 425.000 pessoas. Muitas delas terão contribuído para a prisão, o internamento em campos de concentração e a morte de milhares de judeus holandeses no implacável sistema de extermínio nazi. No fim da guerra, apenas 27% da população de judeus holandeses tinha sobrevivido. 

Terão uns colaborado por medo, cedendo a pressões intoleráveis, mas também outros voluntariamente, por se identificarem com quem detém o Poder. Num livro publicado recentemente sobre os informadores da Pide, em Portugal, viu-se que muitos deles o faziam espontaneamente, em cartas que escreviam por sua mão, a denunciar pessoas (conhecidos, vizinhos, colegas) suspeitos, por não serem «afetos ao regime».  

Ninguém nasce para ser herói, dir-se-á. E dir-se-á também que mais são as circunstâncias que tudo decidem. E se as mais das vezes os heróis de que se fala quando se fala de heróis surgem-nos envoltos no calor do combate, ou recobertos das suas bandeira, das suas ideias e ideais, são menos as vezes em que falamos de outra coragem, muitas vezes desconhecida, dos poucos que simplesmente se erguem acima da sua frágil humanidade e recusam pactuar com a prepotência.
Ninguém celebrará afinal essa coragem silenciosa, perante uma nova normalidade, «quando o tiroteio emudece, / quando o inimigo se torna invisível / e a eterna sombra das armas recobre o céu.» 

Quando a desordem se torna ordem, quando o Poder que tudo invade, corrompe tudo e todos, não é fácil o afrontamento, não é fácil dizer não. Diante do Poder triunfante e dominante, sentimo-nos desarmados, isolados. As vozes que se erguem contra a opressão são isso mesmo, e muitas vezes só isso: vozes. A Resistência de que se fala e que é representada nos murais que surgem pelas cidades é feita de gestos grandiosos, de bandeiras desfraldadas, de palavras de ordem desafiadoras e gloriosas. Mas essa Resistência idealizada é quase sempre a Resistência de outros, que combatem à distância, longe do morno quotidiano, da «pequena dor tão mansa e quase vegetal que cada um de nós / traz docemente pela mão». O risco, quando há risco, nunca vai muito além de alguns problemas, de algumas contrariedades que enfrentamos com advogado ao nosso lado. E no entanto mesmo essa pequena coragem nos falta tantas vezes. Não será a vida que se arrisca, diremos, mas arrisca-se perder o emprego, a casa, a tranquilidade, a aceitação dos que nos rodeiam. Quem não se há de habituar às quase necessárias concessões, alibis aceitáveis para se poder continuar a viver,  conviver, sobreviver? Aos poucos habituamo-nos a ver as palavras perderem o sentido que antes tinham e a que agora é o Poder a assacar-lhes o sentido que devem ter. Não se diz igualdade, não de pode dizer inclusão, proibido dizer diversidade: todas elas são palavras proibidas. 
Nessa nova ordem, o que antes era recatadamente disfarçado, torna-se agora triunfante. A empatia, a compaixão, a identificação com o sofrimento dos outros terá agora que se defrontar com a hostilidade e até a punição de quem detém o Poder. Torna-se possível declarar abertamente como princípio aceite ou aceitável coisas destas: «A empatia é um vírus, um bug, no sistema moral, uma fraqueza da civilização ocidental». Isto dito pelo homem mais rico do mundo, um dos homens mais poderosos de Magalândia, por sua vez o país mais poderoso do mundo, conselheiro e cúmplice do maganão que governa Magalândia. Num momento seguinte, será dado mais um passo, também esse anunciado pelo mesmo Elon Trump: «as decisões políticas devem ser tomadas por inteligência artificial, essas sim lógicas e racionais, que não se deixam influenciar pela empatia».

A coragem para recusar essa lógica e essa desumanização passará as mais das vezes por pequenos gestos, uma recusa silenciosa, para a qual não há medalhas e que nenhum mural celebrará. Coisas de pessoas que não se vêem como heróis, simplesmente pessoas decentes. E é isso talvez o que simplesmente nos é pedido.
Antes de acabar, deixem-me citar mais uma vez o poema «Todos os dias», de Ingborg Bachman, que traduzi em tempos para a inestimável DiVersos, uma revistinha muito da minha predileção: 

«A medalha a pobre estrela / da esperança sobre o coração / (…) Conferida / por deserção da bandeira, / por coragem face ao amigo, / por denúncia dos segredos infames / e por desobediência / a todas as ordens.»

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