não há palavras

Na infância da humanidade, muito antes de se falar em influencers, quando não havia universidades, nem internet, nem Wikipédia, não havia também mais nada que pudesse servir de candeia no mundo de trevas e de mistério em que tudo parecia estar mergulhado. A explicação para as coisas e para os acontecimentos, assentava antes naquilo a que hoje chamamos o pensamento mágico: a crença no poder do pensamento para agir sobre a realidade, na capacidade de dominar o mundo exterior através de rituais ou de palavras mágicas. No fundo, uma forma de racionalizar o desconhecido e os medos que ele desperta. Em muitas tradições místicas e esotéricas crê-se que as palavras possuem esse poder e que são (podem ser) agentes de criação de uma realidade até aí inexistente. 

Quando nada mais havia, havia já a palavra («No princípio era o Verbo», diz um dos livros sagrados do cristianismo) e é tal o poder da palavra que pode criar a realidade que nomeia. Diz-se : «Faça-se luz! E a luz faz-se». Diz-se «Abracadabra» e logo aparecerá o que desejamos (ou desaparecerá o que tememos). Quantos e quantos pastorinhos não andarão por esses montes e fragas a gritar-lhes o «abre-te sésamo» que fará surgir a gruta de tesouros sem fim que sabem estar aí escondidos à guarda de alguma moura encantada, só à espera de ser desencantada.
De certo modo, podemos dizer que em toda a nossa cultura por todo o lado e a todo propósito e despropósito está latente a ideia de que sem uma palavra que a nomeie nenhuma realidade existe.


Num livro que se tornou famoso pelo que tem de visionário e premonitório, George Orwell imaginou um universo totalitário em que o Poder não só domina a sociedade como a pretende transformar tão radicalmente que nenhuma alternativa possa jamais existir. O instrumento mais poderoso de que dispõe é precisamente a língua, as palavras. Em particular a «novafala», a língua oficial, que se vai sobrepondo de forma radical (e, supostamente, irreversível) à língua até então falada. Partindo do princípio de que só existe e só pode ser pensado, o que pode ser nomeado, o objetivo da novafala era tornar impossível qualquer outro modo de pensar, para além do pensamento oficial, de modo que «qualquer pensamento herege — isto é, qualquer pensamento que divergisse dos princípios [oficiais] — se tornasse literalmente impensável. Era algo que se fazia em parte inventando novas palavras, mas sobretudo eliminando palavras indesejáveis e excluindo das palavras que restassem todos os sentidos heterodoxos e, tanto quanto possível, todos os sentidos secundários».

De um modo ou outro, não há ditadura nenhuma capaz de resistir à mesma tentação de eliminar uma realidade incómoda, proibindo tudo o que a possa referir. Proíbem-se livros, filmes, canções e proibem-se também as palavras. A Censura salazarista enviava às redações e às rádios listas de palavras que não poderiam ser usadas nos noticiários ou nos textos publicados. Palavras como sindicato, greve, manifestação, liberdade de imprensa, e todas as que pudessem despertar a curiosidade sobre o mundo onde elas podiam existir, eram suprimidas do vocabulário, na ideia de que não havendo palavras não haveria a realidade que elas traduziam.

O livro de Orwell foi publicado em 1949 e intitula-se «1984» (tradução para português de Vasco Rato, ed. Dom Quixote.) 
Bem poderia ser «2025».
O que ele descreveu como uma ficção é cada vez mais uma realidade em várias pontos do mundo. Sempre ditaduras. Um caso surpreendente porém poderia ser o de Magaland, talvez o país mais rico e mais poderoso do mundo, onde hoje em dia assistimos a uma série de transformações que em tudo fazem lembrar as operações linguísticas (e outras) do mundo sinistro retratado por Orwell.

Além de revogar todas as medidas até aí existentes que pudessem contender com a nova visão do novo Presidente, é adotada uma política deliberada de apagar da memória (por enquanto só da memória oficial, dos organismos do Governo) tudo o que pudesse evocar uma realidade diferente. Ultimamente chegou-se ao ponto de eliminar todos os documentos oficiais ou partes dele que fizessem referência a políticas ou realidades condenadas pela nova Administração. As palavras usadas na busca de tais documentos são tão precisas e direcionadas como: anti-racismo, diversidade, igualdade, preconceito, crise climática, feminismo, nativos americanos, emigrantes, poluição, diferenças culturais, preferências sexuais… E mais um ror de palavras deste teor. Um dos principais jornais do país publicou nessa altura uma amostragem das palavras que deveriam ser riscadas dos documentos oficiais existentes e evitadas daí para a frente. São centenas. Com resultados por vezes inesperados: uma investigadora de uma das mais prestigiadas universidades do mundo (mas… lá está, professora de ginecologia e obstetrícia, uma área que abunda em palavras proibidas) viu desaparecer do pé para a mão um artigo que tinha escrito e publicado há cinco anos numa revista da especialidade. Deixou de existir, pura e simplesmente.

Leio isto e penso que há aqui qualquer coisa que não deixa de nos fazer lembrar o «pensamento mágico» primitivo, a ideia de que apagar (por decreto) a palavra equivale a apagar a realidade que ela designa (ou designava).

A conversa já vai longa e não sei sequer se o merece, pelo que já me calo antes que se torne indigesta. Hoje deu-me para aqui. E se o que me puxou foi aquela lista de palavras proibidas decretada em Magalândia, o que me pôs a pensar nestas coisas das palavras e dos seus ignorados poderes foi uma cena a que assisti quando andava a passear o cão. Não tem nada a ver, claro, mas meio a rir meio a sério achei que poderia ser uma boa metáfora da destruição da palavra (e do direito à palavra) a que todos os déspotas se propõem com tantas ganas que nem que seja à marretada. Tirei uma fotografia e aqui a deixo, para ver se também acharão que é assim.

One thought on “não há palavras

  1. «(…) Há aqui qualquer coisa que não deixa de nos fazer lembrar o “pensamento mágico” primitivo, a ideia de que apagar (por decreto) a palavra equivale a apagar a realidade que ela designa (ou designava).»
    Tal e qual.
    Pertinentíssima reflexão.

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