[…]

Há quem diga que poesia e bons sentimentos não dão em bons casamentos. E quem diz bons sentimentos diz boas causas, acrescentam outros. E eu fico-me a pensar no que diriam então os que assim sentenciam de um poeta que conheci há dias.
Encontrei-o numa página do «Guardian» (https://www.theguardian.com/books/article/2024/sep/02/poem-of-the-week-by-fady-joudah), que depois me levou a uma busca pelos escaninhos e veredas da net para descobrir o resto.
E o resto começa por ter a ver com a «circunstância» do poeta, que depois de uma maneira ou de outra se refletem na sua poesia. Árabe, filho de refugiados palestinianos, criado na Lìbia e na Arábia Saudita, a viver na América, médico dos Serviços de Urgência, voluntário dos Médicos sem Fronteiras em África – tudo marcas que traçam um intrincado de fidelidades e de heranças nem sempre compatíveis.

O último livro de Joudah é de certo modo uma ilustração do dilema assim suscitado: poeta que pressentimos originalmente de vocação lírica, chamado pela profissão e pelas «circunstâncias» a responder ao apelo que lhe chega da cruel realidade da Palestina ocupada. Nem sempre é pacífico este convívio entre poesia e intervenção política. É o próprio poeta a reconhecer o terreno minado que isso representa e as dificuldades em contorná-lo. Como diz numa entrevista, «tenta desesperadamente fazê-lo sem condescendência ou falsas simplificações». Esta profissão de fé, porém, coloca-o na ténue fronteira que a separa das armadilhas do «sentimentalismo narcisista», do sensacionalismo das causas da atualidade, ou da tentação de transformar o poema em panfleto ou artigo de opinião. Joudah procura escapar à armadilha, com as metáforas a que recorre, a presença da natureza, mesmo desfigurada ou mera memória de um tempo limpo do passado, a música latente nas elipses que usa para remontar ao que significa (para todos nós, afinal) ser humano. Muito do que ele diz está assim no que não é dito, apenas indiciado.

A começar pelo título do livro: nenhuma palavra ou frase, simplesmente três pontos dentro de parênteses retos […], a lembrar um pictograma (é o poeta quem o diz). E como qualquer pictograma, também ele sujeito a leituras ambíguas ou múltiplas – há quem veja aqui uma alusão a alguma coisa que é suprimida ou omitida. Ou censurada. Quem se ativer mais ao simbolismo gráfico do pictograma, poderá nele ver, por exemplo, um espaço fechado, uma casa destruída com pessoas lá dentro, a cela de uma prisão. 

Há um poema – com o título […], comum, aliás, a outros poemas– tão inesperadamente como uma bomba que tivesse deflagrado, sem preâmbulos (a bomba já explodiu, a casa já desabou),  começa pela conjunção «e» («E, de repente, uma menina»). Não precisamos de saber que a cena evocada se passa em Gaza entre escombros, não é disso que o poema trata diretamente: é antes o assombro e a alegria de uma menina ao deparar com os que a salvam de entre as ruínas; e logo, da mesma forma elíptica e repentina, o medo de se ver só e para sempre separada do mundo onde até aí viveu protegida e amada.

Não são muitos os casos de autores em que a poesia sobrevive ao ser filtrada pela atualidade e as referências políticas diretas. Para melhor decidirem, os leitores poderão tentar ler os poemas procurando «ignorar» as circunstâncias concretas (ou supostas) em que eles surgiram. Idealmente, o que passou pelo «filtro», que reteve o que antes havia de meramente circunstancial, constituirá o essencial da poesia de Fady Joudah.
Para ajudar neste teste, incluo aqui dois dos poemas do livro.

[…]

e de repente uma menina recebe uma ovação

dos seus salvadores,
tudo homens ajoelhados e deitados no chão

limpando os escombros obra de outros homens
com suas mãos nuas,
desfigurados pela poeira
como fantasmas.

Todos os desastres são naturais
incluindo este,
porque os homens são naturais.

Os salvadores dizem-lhe
que ela é incrível, poderosa,
e por uma fração de segundo, antes do peso

do desaparecimento da sua família
a afundar, ela sorri,

como uma criança
que viveu sete anos acima do solo
a receber elogios.

[…]


Vós que me tirastes de minha casa
sois cegos para o vosso passado
que nunca vos larga. 
Cegos para o que me é feito
a mim agora por vós.
Um agora, dilatório, desgastante, 
de modo que o crime
é das alterações climáticas e não um massacre,
de modo que o presente nunca tem fim.
Mas eu estou mais perto de vós
do que vós de vós próprios, e isto, meu amigo inimigo,
é a definição de distância.
Oh, não fiqueis indignados.
Vêde o vídeo. Vou enviar-vos o link
da limpeza que fazeis de mim membro a membro
atirado para a rua onde se marcha onde 
a minha catástrofe no presente
não tem ainda a dimensão do vosso passado:
É este o muro
contra o qual lançais os vossos dados?
Falo no sentido etimológico. 
Não me importa que as balanças pendam para o vosso lado, 
não é o que conta para mim. Tenho um coração  que apodrece,
resiste, e espera. Tenho genes,
como os vossos, que não observam 
a «Pirâmide de Danos».
Dizei, vós que me despejais de minha casa,
que também desalojastes os meus pais
e os pais deles das casas deles:
Que tal a vista da minha janela?
Qual o sabor do meu sal?
Deverei eu condenar-me um pouco
para que possais perdoar-vos
no meu corpo? Oh, como amais
o meu corpo, a minha casa.

8 thoughts on “[…]

  1. Obrigada, querido Zé, por nos dares a conhecer pessoas e coisas tão interessantes, como este poeta. Aproveito para vos desejar um Bom Natal e um Óptimo 2025. Abraços da Clara e do João

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  2. Cuanto admiro tus crónicas, Zé amigo, y está última muy especialmente. El pais/infierno de donde los condenados por Israel no pueden huir, ni de día ni de noche, mientras les caen las bombas y los hostigan los drones, donde los niños están condenados a morir porque el ejército “más moral del mundo”(!!!) ha destruido todos los hospitales antes de destruirlos a ellos… Ese país,  Gaza (para mí es un increíble país,  a pesar de los estatutos hipócritas) lo llevo muy dentro del corazón desde un ya lejano 7 de octubre, y me duele, me duele…Gracias, Zé,  por hacer que tus lectores piensen en él,  en ellos.Y que 2025 vea la condena total y absoluta de los asesinos, los genocidas..Que vuelva la Paz a las gentes de Palestina.Enviado desde mi Galaxy

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    1. Vindo de ti, da autora de “Crónicas nómadas”, o elogio deixa-me corado de acanhamento. (ia dizer “embaraço”, mas se calhar os leitores espanhóis iam tirar conclusões precipitadas… Obrigado, Dorores. Gostei muito de te ver por aqui.

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