Ao que me dizem da editora (Relógio d’Água), está por pouco a saída de um livro do Salinger que eu traduzi. Para quem não conhece este autor, terá nessa altura uma boa amostra do que a casa gasta. São duas noveletas, bastante diferentes entre si, e cada qual com a sua dose do génio que aflora noutras obras dele – estou-me a lembrar de «À espera no Centeio» ou dos «Nove Contos», também traduzidos por mim. Este que agora aí vem – com o título «Carpinteiros, levantai alto a cumeeira e Seymour, uma introdução» – é a tradução que resulta da profunda revisão de uma versão feita antes para outra editora. E é uma maravilha! O livro, esclareço. E esclareço porque quando digo isto, o Jean Némar (língua afiadíssima, como bem se sabe) comenta sempre do lado: «Há quem diga que o original também não está nada mal…» (as reticências são minhas; quando ele o diz, são substituídas por um risinho de mofa que eu dispensaria).
Mas que se segue, a primeira parte («Carpinteiros….») é uma história divertidíssima que começa por arrancar dentro de um táxi, que depois fica bloqueada pelo desfile de uma incrível banda de escuteiros ou coisa que o valha e acaba por se refugiar no apartamento do seu narrador (Buddy Glass). No táxi, além da história e do seu narrador, segue também o que poderia ser uma peça de inventário do tipo de personagens que povoam o universo do Salinger: uma dama de honor de um quase casamento, de feitio belicoso e autoritário, que depressa se impõe ao resto da tripulação; o marido dela, a disfarçar a submissão com um arremedo de ironia e falso humor; uma senhora, amiga da quase noiva do quase casamento, afixando um «sorriso que só lhe faltava ser canonizado»; e ainda um velhote minúsculo de chapeú alto e fraque, surdo como uma porta, que há de acabar esquecido e depois desaparecido do tal apartamento, sem que o narrador, e nós com ele, faça a menor ideia do destino que levou. Não conto mais, para não roubar a surpresa aos que ainda não leram a história. E também porque ainda (e sobretudo!) quero falar da segunda parte do livro: «Seymour, uma introdução»
Este… este quê? Conto? Novela? Texto inclassificável? Não sei como se sairão desta os especialistas da especialidade de dar um nome às coisas, e que achem nisso alguma vantagem. Nanja eu. Seja o que for, é mais uma maravilha de entre as maravilhas com que sempre podemos contar no que nos vem deste autor. Chegados aqui, haverá quem note uma qualquer parcialidade nas minhas palavras, pecado de que eu, aliás, pecador me confesso.
Também aqui, o narrador é o mesmo Buddy Glass da primeira parte do livro e é seu declarado intento fazer uma tal apresentação do irmão, Seymour, que seja dele uma descrição tão completa e fiel e viva que torne possível, no final, enviá-la para publicação na revista simplesmente entregando-lhe (isso mesmo, à descrição!) «um bilhete de comboio e talvez uma sanduíche para o caminho e qualquer coisa quente num termos, e pronto»!
Na verdade, assistimos – literalmente, assistimos – nós leitores, à escrita do retrato de Seymour. Tão fiel e pormenorizado quanto o projeto de Buddy o exige: assim, é-nos descrito por meio de vários capítulos, um para o nariz, um para as sobrancelhas, outro para o cabelo, e por aí diante, com divagações e circunlóquios recheados de histórias, de episódios, de relatos do passado e do presente que aos poucos vão fazendo surgir, em três dimensões – pelo menos três – e ao vivo o irmão Seymour em pessoa. Tudo isto numa escrita vertiginosa, exuberante, jubilosa: num processo que nos permite «ver» o escritor no seu trabalho, pelo menos quando o que temos diante dos olhos é um escritor apaixonado pelo seu tema, pelo seu objeto, pelo seu projeto, e possuído pelo génio (ou o demónio) da escrita. As frases encadeiam-se num emaranhado esfuziante de histórias, de divagações, de circunvoluções, para logo se dispersarem em novas derivações, em novas frases – parentéticas, subordinadas, explicativas – numa verdadeira girândola exultante, que é no que dá o puro prazer da escrita. A tal ponto que o autor, subliminarmente consciente, do barroquismo da construção, da profusão de parênteses e apartes, às tantas decide comprometidamente oferecer ao leitor por suas próprias mãos um «despretensioso raminho de parênteses temporãos: (((( )))).» Que ali ficam a embelezar a página, para sua desculpa e para nosso contentamento.
Coube-me em sorte, pelo menos em parte, a vertigem dessa euforia e disso tentei dar mostras equivalentes na versão portuguesa. Os leitores aí estão que poderão julgar. Tenho para mim, que cabe ao tradutor de certo modo um papel de mediador entre as duas versões do mesmo livro e partilhar e tentar comunicar ao leitor da sua língua a alma, o que vai na alma do autor que tem em mãos. E usar, para tanto, os mesmos materiais, os mesmos recursos que foram convocados pelo original – desde o nível de linguagem, o registo do vocabulário, e até a pontuação, sempre que possível. E se o que nos vem ter à mão é um trabalho em talha dourada, barroco ou rococó que seja, pois seja também essa a nossa oficina.
A tal propósito, vem-me à ideia, um pouco a contrario, um outro autor que também traduzi (Erri de Luca) e que de certo modo será o oposto do Salinger no que à escrita diz respeito. Aqui, ao contrário da exuberância de Salinger, o que temos é uma obra quase artesanal, estreme, feita à mão. Um estilo cru, seco, reduzido ao mínimo de tudo o que possa ser redundante ou excessivo. E, para retomar o que atrás dizia, caberá aqui ao tradutor cortar nos materiais e nas ferramentas, aproximar-se o mais possível desse minimalismo. Quem souber apreciar o que há de belo e radical na simplicidade de uma cantarinha ou de uma infusa artesanal, saberá também ver na singeleza da escrita de um autor como Erri de Luca como ela está próxima do que há de mais elementar e essencial na natureza e no espírito humano. E como, ao mesmo tempo, isso não o impedirá, de ver o que há de magnífico numa criação de Monteverdi ou de Bach, só dois exemplos, aqui chamados para levar a água a este meu moinho.
Falei ali atrás, para expor os desafios levantados à tradução de dois autores tão diferentes, das diferenças na escrita entre os dois. Na escrita, disse eu, mas poderia também dizer, na vida e nas escolhas de vida que fizeram, e que acaba por deixar marcas no que escrevem e como escrevem. Nada de tão diferente, quase radicalmente oposto, entre os dois. O que em Salinger se respira do mundo intelectual, quase aristocrático, abastado e displicente do meio culto e artístico de Nova Iorque, não tem nada a ver com o que nos conta Erri De Luca, que nasce para a escrita tardiamente, na idade madura, depois de ter trabalhado como operário nas oficinas da Fiat, em Turim, e mais tarde, emigrado, na construção civil em França. Um escritor comprometido com a luta dos mais desfavorecidos, como o eufemismo costuma dizer, que aparece ao longo da vida alistado em várias movimentações políticas, e sempre de forma interveniente e pragmática. Uma vez em que lhe telefonei, atendeu a mãe dele, que me disse que ele tinha ido para a Jugoslávia (era no tempo da guerra de 1993-99) como camionista integrado numa caravana de ajuda reunida pela solidariedade internacional.
Ia agora falar de um outro livro que traduzi há pouco, que ainda não foi publicado (e não sei se o será…) e que pensava usar como mais uma fábula sobre a nobre arte da tradução. Mas a conversa já vai longa e acho que vai ficar para a próxima. Uma coisa de cada vez, como vocês dizem, ao chegarem ao décimo parágrafo destes desabafos a choverem no molhado.
Ego te absolvo, Zé.
Aquesta vegada he hagut de recórrer a la traducció catalana del teu text, tan complexe.
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Oh Zé, ja contaste tanto que não sei se vale a pema ler… Por acaso até vale, porque o Salinger é imperdivel. Obrigado pea dica, um grande abraço e boas Festas
Sérgio
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👍😘
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Gostei muito!
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