O Anjo da História

Só mais tarde, em casa, reparei na imagem, na fotografia que tinha tirado há pouco na rua. Como que vista do avesso, parecia-me agora falar de outra coisa (de outras coisas) que antes estivesse oculta. A chamada realidade tem destas coisas: vemos nela o que estamos desde sempre ensinados a ver. E com base nesse logro construímos a história que lhe dará significado, para a podermos arrumar, catalogar num dos cacifos em que dividimos a vida que vivemos. Fora do contexto, fora dessa realidade, digamos assim, ficamos entregues a imagens puras, ainda sem um sentido atribuído. Como se tivéssemos de ler uma tapeçaria vista do avesso, onde reconhecemos os contornos, mas pouco mais. Com muito menos se construíram fábulas e teorias do conhecimento, deixem-me que lhes diga.
E, assim, era como se tivesse agora entre mãos uma imagem nova.

Os cartazes (ou coisa que o valha), improvisados, feitos de cartões de embalagens. Não têm (ou não se vê) nada escrito. Pessoas sem rosto, graves e silenciosas. Correm as ruas da cidade, de muitas cidades, do mundo até. Avisam-nos de um perigo ou de uma ameaça que nós ignoramos, ou fazemos por ignorar. À nossa ignorância ou indiferença respondem com alarme redobrado. Cortam-nos o caminho, obrigam a parar a circulação da rotina tranquilizante. Ocupam os símbolos da depredação, algemam-se aos portões a  vedar o acesso, como que para nos obrigarem a parar, a pensar no significado desses lugares e símbolos. Respondemos com invectivas e protestos – quando a mensagem não agrada, que se faz? Mata-se o mensageiro. Queremo-los longe de nós, estes mensageiros agourentos.

De costas, parece que olham o passado, tudo o que ficou para trás. No que nós vemos uma cadeia de acontecimentos que deram forma ao mundo que habitamos, vêem eles uma esteira de destroços, de escombros de guerras várias, de desastres avassaladores. Como o Anjo da História sabem como é já impossível despertar os mortos e reconstituir o que se destruiu. Um vento impetuoso sopra sobre o mundo e impele-o irresistivelmente para o futuro, que na imagem lhes está atrás, enquanto, à sua frente, a pilha de destroços cresce para os céus. A esta tempestade chamamos nós progresso. 
Com muito menos, deixem-me só acrescentar, houve já quem construísse muitas teses sobre a filosofia da História.

É para isso que nos querem alertar estes que aqui fazem o papel de Anjo da História. Dizer-nos que «ainda é possível parar», mas que há que fazer alguma coisa. É isso que nos querem dizer. E vemos como o desespero deles cresce, como as ações e os gestos deles se tornam cada vez mais instantes diante da nossa indiferença. Diremos que não é propriamente indiferença – que é preciso viver e que a vida é «assim».
Se bem que – deixem também que vos diga – no fundo saibamos todos muito bem do que estão eles a falar, quando nos questionam, nas ruas por esse mundo fora, a avisar-nos de que está a chegar o tempo aprazado.  
«O tempo provisoriamente adiado aparece já no horizonte. Vêm aí dias mais duros.»

One thought on “O Anjo da História

  1. permitam-me um post scriptum aqui, se ainda for a tempo:

    Não está referido no texto, mas como alguém terá reparado ele é em grande parte uma indisfarçada glosa de uma citação de Walter Benjamin, em Teses sobre a Filosofia da História. Nunca li nenhum livro dele, diga-se de passagem, não vá pensar-se que voo tão alto, mas esta citação persegue-me de certa maneira, desde a primeira vez em que a li, em tradução do Manuel Resende, como epígrafe do seu primeiro livro (Natureza Morta com Desodorizante), que quem não leu podia agora aproveitar esta boleia para o ir procurar. Vale muitíssimo a pena. Vai aqui a tal citação (na tradução do Manel Resende, como disse):

    «… Um anjo parece estar-se afastando de algo que contempla fixamente. Tem os olhos abertos, a boca aberta e as asas desfraldadas. Assim imaginamos o anjo da História. Encontra-se de face voltada para o passado. No que vemos uma cadeia de acontecimentos, vê ele uma única catástrofe, uma interminável catástrofe que continuamente acumula destroço após destroço e os vai amontoando a seus pés. Desejaria ficar, despertar os mortos e reconstituir os pedaços, mas sopra do paraíso uma tempestade que lhe toma as asas com tal violência que o anjo já nem consegue fechá-las e é irresistivelmente impelido para o futuro, que lhe está atrás, enquanto, à sua frente, a pilha de destroços cresce para os céus. A esta tempestade chamamos progresso».

    Walter Benjamin, Teses sobre a Filosofia da História

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