viagem através de um país de chuva

De comboio, rumo ao Norte, dir-se-ia que viajamos pelas traseiras do país. Desenhadas longe dos centros urbanos, dos monumentos, das grandes praças emblemáticas, dos postais ilustrados, as linhas férreas esgueiram-se antes por entre os campos, as bouças e cercados que formam a manta de retalhos desta paisagem. Uma ou outra pequena vila, estâncias de veraneio das burguesias citadinas, com villas e palacetes de uma elegância rebuscada e falsa, hoje reabilitada e tida como estimável, a arremedar chalés de outras paragens e outros climas. Mas de resto o que há são os retalhos dos talhões e courelas caseiras. Adivinha-se que será quase tudo formado por pequenas propriedades, medidas a palmo e tratadas com desvelo por quem pouco mais terá. Lameiros chamados à vida pelas últimas chuvadas, milharais descorados a prepararem-se para as forragens de inverno; hortas repolhudas ao lado de umas nesgas de olival onde se aconchegam seis ou sete oliveiras esventradas, talvez centenárias. Nada que se pareça com os infindos quilómetros de Oliveira da Serra marca registada, que nos acompanham ao longo da estrada de Beja – uma paisagem de um verde monocórdico que só poderá fazer as delícias de alguma praga fastidiosa que aí venha Europa fora a saborear a uniformidade biológica. Aqui não: a cada passo, uma cor diferente, uma árvore diferente, um cultivo diferente. E muito embora perceba o que há nisto de contrário à racionalidade da produção, à rentabilização dos recursos, ao emparcelamento dos economistas, é isto que eu prefiro, que me alegra o olhar, e me traz à ideia não um próspero proprietário rural, uma florescente empresa multinacional a medir a terra em euros, mas vários, muitos, pequenos donos de courelas e quintais a tratar de tudo com desvelo, como se disso dependesse (e às vezes dependerá) o pão que terá sobre a mesa. Talvez que o que digo seja também uma visão condenada à extinção, uma vida que já se despede de nós assediada pelas propostas irrecusáveis de empresas insaciáveis, à cata de terra e de terrenos. É o que vamos também pressentindo, anunciado por manchas de eucaliptos verdejantes e prósperos, tão cerrados que quase nos admiramos que não tenham ainda inspirado o êxodo maciço dos coalas australianos acossados pelos incêndios devastadores que por aí lavram.

Por este rendilhado do caminho, vê-se que o comboio aqui apareceu num mundo já traçado, já habitado por obstáculos que era preciso contornar, limitado por uma variedade de pendências que lhe iam traçando o rumo. Nada que se pareça com as linhas férreas que surgem nas terras sem dono, ou purgadas dos antigos donos sem direito à palavra. Assim no Oeste americano, num país desenhado por políticos e agrimensores num gabinete central onde se iam planejando as linhas e as cidades do futuro. «À medida que a linha avançava no terreno, ia largando para a vida cidades nascentes a intervalos de vinte quilómetros mais ou menos» – cito um livro extraordinário sobre a colonização do Oeste americano, que Hollywood haveria depois de exportar em mitos povoados de índios e cowboys. Os que costumam ler estes meus desabafos já devem estar a antecipar a falsa modéstia com que vou contrabandeando os livros que traduzo. É o caso. Um dos que mais gozo me deu traduzir, que eu quis intitular «Terra Má», literalmente do original «Bad Land», mas que a editora não deixou. Ficou «Terra Madrasta»…  e também não está mal. O autor Jonathan Raban faz uma viagem pelas extensas pradarias do atual Montana e reconstitui a espantosa odisseia da emigração europeia, da distribuição de terras, do cultivo da imensidão de uma terra praticamente estéril. O futuro mapa do território é antes de mais uma criação das companhias de caminho de ferro, «tão arbitrária como a descrita no Génesis. A companhia dizia: Faça-se aqui uma cidade; e a cidade fazia-se», com ruas apenas delimitadas por estacas e cordas, um mero esqueleto onde ainda nada existia. Mas haveria de existir. Cidades futuras que pouco mais tinham ainda do que o nome que lhes era dado: perguntava-se aos diretores e administradores da Companhia o nome dos filhos e assim se batizava o futuro. Um diretor tinha duas filhas, Isabel e May: a cidade viria a chamar-se Ismay, fundindo os dois nomes. Outras seriam Mildred, Lorraine e por aí fora ao sabor do capricho de decisões igualmente arbitrárias. Ou fruto do acaso: «Um qualquer dia de 1908, alguém com um mapa aberto em cima da secretária achou que já era tempo de fazer outra cidade e rabiscou o mapa. Talvez o nome da cidade seja o da pessoa com quem calhou estar a falar. Há uma cidade algures em Milwaukee Road que ficou com o nome de um jornalista que calhou ir na carruagem presidencial quando o diretor Albert J. Earling andava numa das suas passeatas a distribuir nomes».

Não aqui. Aqui, viajamos linha fora e, ao invés desses improvisos prosaicos e desinspirados ou da mania de batizar terras e edifícios com os nomes das celebridades do dia como agora é de moda, é todo um desfiar de histórias passadas, de lendas, de nomes a lembrar coisas bem mais antigas: pode ser Esmoriz, a lembrar os tempos da Reconquista; pode ser Mogofores, onde a bruxa Moga fazia desaparecer as pessoas; pode ser Albergaria dos Doze, ou Setil, ou Braço de Prata, ou Lamarosa, ou Vermoil… Não dá logo vontade de ir rebuscar livros e almanaques (ou mais expeditamente a Wikipédia) e trazer ao de cima as histórias que o nome sugere?

Com os nomes é assim: há o que dizem em voz alta e o que apenas sussurram e mal se ouve. Muitas vezes com uma história a querer espreitar. O nome deste texto, por exemplo: foi roubado ao José Carlos Marques. A minha viagem de comboio fez-me lembrar um «livrinho» dado à luz (nem ouso dizer publicado, ou editado) em 1968, intitulado «despedida e viagem através de um país de amigos e de chuva». São onze ou doze páginas, em pequenas tiras de papel, agrafadas, datilografadas, talvez com cópias a papel químico (alguém se lembrará desta maravilha da alta técnica pré-fotocópia?), com uma tiragem de 6 exemplares 6, também uma discretíssima homenagem ao O’Neill. Mais tarde foi incluído pelo autor numa recolha de poesia inédita, sob o pseudónimo Aurélio Porto, desta vez num «livro a sério» (sempre são 570 páginas!). Mas o tal livrinho da viagem é formado por onze pequeníssimos poemas, de uma ou duas linhas, apontamentos fugazes, imagens breves, como que entrevistas através das janelas de um comboio em movimento, a deixar-nos um travo enternecido e acidulado como de um fruto saboreado gomo a gomo.

4 thoughts on “viagem através de um país de chuva

  1. Como sempre belo texto, mas há sempre um mas. O mas é um convite a que faças o percurso de comboio até ao nosso algarve, até lagos. Pode ser que a chuva se deixe encantar por ti e desça a esta terra, e até pode ser que encontres a alma do Nuno Júdice e a do Teixeira Gomes com quem te agradará falar.

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