Decretou-se – não sei quando, não sei quem – que a boa literatura e os bons sentimentos andam sempre de costas voltadas. E isso que se diz dos bons sentimentos, poderá dizer-se de todas as suas declinações: as boas intenções, as boas causas, os bons propósitos. É muito capaz de ser verdade, sobretudo se pensarmos em alguns exemplos de uma literatura feita de pieguice, de beatices laicas, de sermões bem pensantes que mais não fazem, no fundo, do que pregar aos convertidos. A virtude, como os amores felizes, os guarda-livros honestos ou os casais fiéis, raramente nos merecem o mesmo interesse que nos despertam os marginais, os trapaceiros, as complexidades dos amores ilegais ou contrariados. Um estudante aplicado, sensato, incapaz de matar, sequer pensar em matar, alguma velha usurária dificilmente nos serviria de guia pelos intricados labirintos do crime, da culpa e da redenção. Digo eu. Há livros que precisamente ficaram conhecidos não tanto pela sua qualidade literária como pelos seus proclamados bons propósitos. Basta pensar no famosíssimo melodrama antiesclavagista «A Cabana do Pai Tomás», de uma, tirando isso, desconhecidíssima Harriet Beecher Stowe. Ou basta pensar na maior parte da literatura heróica e edificante que nos legou o chamado realismo socialista, esse sim decretado oficialmente e vigiado de perto, sob ameaça de excomunhão e exclusão, pelo comissariado da propaganda. É um exemplo extremo, é certo, mas que não deixou de ter os seus seguidores noutras paragens. Em modalidades menos extremadas, também é certo, seja porque assim o aconselhavam os brandos costumes locais seja porque nem em toda a parte havia jdanovs à altura ou com igual poder de, digamos assim, persuasão.
Mas, resumindo, e sem ter de bater mais no ceguinho: é sabido que a criação, a inventividade, a poesia, não convivem bem com os decretos, com os preconceitos, com os pressupostos, com as rotas previamente traçadas. E não há bons sentimentos que salvem essa literatura bem intencionada do inferno da banalidade que, aliás, deve estar bem recheado disso mesmo.
Mas… será sempre assim? Terá de ser sempre assim? Hão de perguntar os leitores que apesar de tudo ainda acreditam em bons sentimentos e em boas causas, que choraram ao ler «O Meu Pé de Laranja-Lima», que se comovem com a lição de simplicidade e ternura d’ «O Príncipezinho», que não resistem ao apelo de um livro que tenha por título O Homem que…, O Rapaz que…., a Mulher que… e outras tantas maneiras de anunciar que aí vem uma boa ideia para oferecer no Dia da Mãe. E porque não? Porque não há de a literatura alumiar também os caminhos do vale escuro que todos estamos condenados a percorrer? Servir de exemplo, apontar futuros?
E sou capaz de não me enganar muito se adivinhar que já alguém estará a levantar a mão aí do meio do público atento empunhando o livro recém-publicado de John Steinbeck, «Noite sem Lua», que só a modéstia me impede de dizer que foi traduzido por mim.
É um livrinho pequeno, pouco mais de cem páginas, uma espécie de fábula sobre os horrores da guerra e sobre a resistência à ocupação militar, publicado em 1942. Conta a história da ocupação de uma pequena cidade costeira (que não é nomeada) por um invasor (que não é nomeado). Várias sugestões subliminares distribuídas ao longo da narrativa não deixam muitas dúvidas de que se trata de uma aldeia norueguesa invadida pelo exército nazi. É esta imprecisão deliberada que lhe dá precisamente o valor intemporal de uma fábula, aplicável a todas as situações idênticas em que uma força opressora nos rouba daquilo com que nos identificamos, um país, uma pátria, um lar. Não admira que o livro tenha sido traduzido para quase todas as línguas da Europa e tenha circulado clandestinamente nos países ocupados pela Alemanha, desafiando a censura e a repressão.
O livro, aliás, fora pensado precisamente como um meio de propaganda política. O Exército americano, assim como enviava cantores a artistas de variedades para animar os soldados nas frentes militares, não hesitava também em recorrer a escritores prestigiados com o mesmo objetivo. Steinbeck colaborava como voluntário com várias agências dos serviços secretos americanos (que mais tarde viriam a dar origem à CIA) e foi dessa colaboração que nasceu a ideia de «Noite sem Lua» (The Moon is Down) para encorajar a resistência nos países invadidos.
Não é seguramente o melhor livro de Steinbeck, que todos conhecerão mais pelos seus romances realistas sobre os trabalhadores rurais americanos («As Vinhas da Ira», «A Leste do Paraíso»). Por mim, se tivesse de escolher um livro de Steinbeck para levar para a ilha deserta dos inquéritos de Verão, mais depressa pegaria em «Viagens com Charley», uma espécie de diário da viagem que ele fez através da América numa carrinha adaptada (que batizou de «Rocinante») tendo como única companhia o cão Charley do título. Uma escrita viva, inesperadamente intensa, a rebentar do humor ou da indignação que a descoberta do seu próprio país lhe iam despertando. Muito diferente, do livro «empenhado», do vigoroso manifesto que é «Noite sem Lua», de personagens estereotipadas, rígidas, capazes por isso mesmo de melhor representarem sem grandes ambiguidades o papel que lhes cabe numa peça designada para servir o nobre objetivo de despertar os povos ocupados para a luta contra a opressão. Mais do que uma novela literária, é um panfleto político, deixem-me dizer assim, para cortar caminho. E a escrita é a condizer: simples, sem rasgos de imaginação, sem derivações, sem grandes complexidades ou dilemas psicológicos, disposta quase como uma peça de teatro, sem cenas exteriores, localizada em praticamente apenas dois cenários. O texto pouco mais é do isso mesmo: as falas de personagens de uma peça encenada para um «público-alvo». Aliás, no mesmo ano em que a novela foi publicada, Steinbeck publicou também uma versão teatral.
É o que é: uma boa, uma poderosa peça de propaganda antitotalitária, animada por uma boa causa e por bons sentimentos. Quem lho levará a mal?
Gostei muito, mas depois fiquei a pensar nas polémicas sobre o neo-realismo e o Baptista Bastos à pancada (foram separados por alguém) com o Nuno Bragança na Noite e o Riso…e..
Na continuação do teu texto anterior
Assino:
The mother (bebe-se duro)
The folks (bebe-se café)
The Verse (dorme-se)
E assim vai a minha rua.
Cumprimentos à Senhora Cereja
GostarGostar
Me gustan mucho, Zé, estas crónicas que me estás enviando sorprendentemente (sin previo aviso, quiero decir) y en las,que reconozco tu bella prosa y sobre todo tus pensamientos, tus sentimientos, tus preferencias y tu contenida indignación. Tu fina ironía y crítica humorística también. Gracias. Es un bonito regalo de amigo portugués irremplazable.Y en esta última crónica me uno a ti con toda la capacidad de indignación que ya me conoces, Zé, para gritar contra esta última “machada” de Netanyahu asesinando e hiriendo a miles de personas, muchas inocentes, con sus propios buscadores y talkies-walkies. No matan los hombres, matan sus propias máquinas, como tú bien dices. El ejército más ético del mundo mundial no se mancha las manos. Dios los maldiga.Gracias, Zé, te felicito por esa interesante traducción de Steinbeck. Qué hermoso trabajo el tuyo.Enviado desde mi Galaxy
GostarGostar