O repovoamento de Alfama

Não há muito tempo, a fotógrafa Camilla Watson, de passagem por Lisboa, mas que por cá se foi ficando, desatou a fotografar os bairros antigos da Mouraria e de Alfama. Ou antes, o que aos olhos dela aí havia de mais interessante e vivo: as pessoas que lá moravam. Reuniu assim uma galeria variada de caras e de histórias que, achou ela, era pena deixar na gaveta. Mas também não via nada fora da gaveta onde elas calhassem. Só se fosse nos bairros a que pertenciam. 
Não era mulher de ficar à espera que as coisas aconteçam: havia que restituir os moradores ao bairro. E o que a Camilla sonhou, a Câmara quis, e a obra nasceu. Quem hoje percorrer as ruelas e becos de Alfama há de reparar numas fotografias que de onde a onde lhe hão de aparecer impressas na pedra. A Bélita do Chafariz de Dentro, a Tininha do Beco do Guedes aí estão tal como Camilla as apanhou, com uma pequena placa ao lado a contar um bocadinho das suas vidas.
Num cunhal de pedra aqui perto de minha casa, ficou definitivamente a morar o Sr.  Manuel Mendes que ninguém conhecerá por outro nome que não seja o Manel 18, de quem ficamos a saber que veio morar para Alfama em 1943, com 6 meses de idade.

Uma bela ideia, a da Camilla. E que logo foi aproveitada pela Câmara e pelo seu Presidente, que na inevitável inauguração, com as inevitáveis discursatas, adidos de imprensa e conselheiros de imagem, à falta de melhor inspiração, acentuou a importância de «perpetuar nas paredes as pessoas carismáticas do bairro».
Uma bela ideia, portanto. E no tempo certo. A tempo.

Não tardaria muito, todo esse mundo que evocam as tais «placas de contextualização», seria varrido por uma vaga devastadora de turistas e de alojamentos locais aqui diariamente despejados por cruzeiros e aviões vindos dos quatro cantos do mundo, para durante 3 ou 4 dias devorarem Alfama e tudo o que aí possa existir que vagamente lhes faça lembrar as sugestões dos folhetos do trip advisor e da internet. E na verdade será essa voracidade de gafanhotos de passagem tudo o que daqui levarão de mais parecido com um encontro com as gentes do sítio, com «o encontro de culturas» que é o turismo, como toda a gente diz com um ar desconvencido. De verdadeiramente local, só conhecerão o alojamento. E mesmo esse só durante uns 3 ou 4 dias que por cá passam. Um alojamento local que se fez à custa da emigração forçada dos locais para os bairros da periferia. Nunca conhecerão o bairro que aqui havia antes, porque para eles também não há «antes». É tudo um «agora», sem referência a mais nada. Para eles, Alfama será definitivamente um bairro cosmopolita, habitado por gente de todos os cantos do mundo, falando as muitas e desvairadas línguas do mundo, que passa o dia em pizzarias, esplanadas de caipirinhas e mojitos, a debicar uma comida feita ao gosto do maior denominador comum universal, sem espinhas, sem gosto, sem surpresas, no meio de uma barafunda tonitruante da música da moda e do fado.
É deles, agora, Al-fama e Al-proveito.

Os locais, esses, sem meios para chegar aos alojamentos locais dos turistas, lá foram para outros locais, talvez a reconstituírem uma vizinhança local que dure mais do que 3 ou 4 dias, que fale português entre si, em novas tabernas e leitarias, a falar do antes, dos alegres pregões matinais que, também eles, não voltarão mais. E no Sant’António virão a Alfama ver os turistas locais, ver os casamentos na Sé e as marchas da Avenida.

Dos antigos moradores locais, em breve, poucos mais restarão do que aqueles que as fotografias da Camilla eternizaram. Esses, ficarão para sempre em Alfama, moradores de pedra e cal.

5 thoughts on “O repovoamento de Alfama

  1. É duvidoso que o turismo sirva a aproximação compreensiva dos homens e é certo que, para além de uma importante fonte de divisas estrangeiras, traz consigo vários malefícios. O turista olha com sobranceria o “indígena” que o serve, desloca-se em rebanhos, não tem iniciativa para descobrir os valores locais, tanto da natureza como da tradição. Esta sofre o mais rude embate, pois tudo tende a descaracterizar-se ou a imitar aquilo que foi espontâneo e desprezado. O custo de vida sobe e torna-se incomportável para os nacionais, sempre mal servidos onde prepondera a única clientela de interesse – os estrangeiros.
    Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 4.ª ed., 1980

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