Passo aqui os dias, estou sempre sozinho, pois estou. Já não conheço cá ninguém. Aquela rapaziada dos barcos, morreram todos. Trabalhei lá muito tempo. Estou reformado de lá. Passei muito tempo lá, nos barcos. Havia muita carga antigamente, havia. Agora acabou tudo, acabou esses navios todos. Era cortiça, era carvão, era tudo. Agora vem tudo em contadores. Foi um meu irmão que me arranjou para lá. O meu pai também lá andou. Já não conheci o meu pai. Não me lembro nada dele. Era miúdo ainda. Morreu muito cedo. Também trabalhava aqui no porto de Lisboa. Era o meu irmão, eram dois cunhados meus. Depois ficaram reformados e foram para a província. Tinham lá casa. Eu também tenho lá duas casas. Estão vazias, a cair para o chão. Casas de pedra. Tenho lá uma que gastei uma porrada de contos com ela. Essa é de cimento. Vigas de cimento. Dura para o resto da minha vida. Em agosto vou estar lá um mês ou dois. Era para lá estar, estava lá melhor que aqui. O que é um gajo vai para lá e está lá sozinho. Não tenho lá ninguém. Estava melhor lá no nosso sítio. Temos lá casa. Terrenos há poucos. Vieram uns que andaram lá a comprar aquelas serras todas, a porem vinhas. Andavam lá máquinas a lavrar aquelas serras todas, aquelas barrocas e tudo. As minhas terras nem dadas as querem. Os meus pais tinham batatas, tinham milhos, tinham trigos, tinham umas cavadas ali naquelas baixas, semeavam tudo. Não vendiam, comiam o que criavam, ninguém comprava. Era uma zona que não havia ninguém que comprava nada. Agora os que vêm de fora, compram aqueles sítios, compram aquilo barato. Dantes mal dava para viver. Antigamente trabalhava nas terras, era o tempo da minha mãe, dos meus irmãos. Trabalhava nas fazendas, cavava terra, semeámos batatas, semeámos tudo. Dali da povoação levávamos uma hora a pé. Para ir para aquelas fazendas. Tínhamos lá uma adega, uma casinha e íamos para lá comer e dormíamos lá. Agora lavraram aquelas barrocas, está tudo lavrado. Ainda me deram cem contos por uma fazenda daquelas. Aquilo é só serra. Serras altas. Antigamente não havia estradas. Era só a pé. Era só caminhos. Agora é só estradas. Havia rebanhos de gado. Ovelhas e cabras e cabritos. Era uma vida dura. O meu pai morreu cedo. A minha mãe morreu cedo, praí com uns cinquenta anos. Naquele tempo morria muita gente nova. Passavam muita miséria, coitadas, muita fome. No meu tempo tinha aí trezentos moradores, ainda era muita gente, agora é uma dúzia de gatos, já nem os conheço. Uns morreram, outros… não há lá ninguém do meu tempo. Tinha dois irmão, já morreram os dois. Morreu um e outro apareceu morto lá numa propriedade, enforcado. Enforcou-se. Foi para lá e apareceu lá morto, numa fazenda que lá havia. Foram lá dar com ele morto. Trabalhava aqui nos barcos. Aquilo lá, algum o matou ou o enforcou. Tinha uma gaja, andava só agarrada aos homens, só andava metida era com os velhos. Aquilo lá houve algum gajo, lá o apanhou naquele sítio, lá o apanharam e enforcaram-no. Nunca se descobriu nada. Ela já morreu. Se fosse agora tinha uns cem anos. Eu também já estou velho, já estou com oitenta e seis anos. Morreram todos. Éramos três rapazes e três raparigas. Só uma é que é viva. Está com noventa e cinco anos. Já não sai de casa, coitada. A minha sobrinha está ao pé dela, só tinha aquela filha. A minha sobrinha, coitada, também teve azar. Estava com dois homens e agora está sozinha, os gajos largaram-na da mão e ficou sozinha. Esteve sempre junta com dois homens. Também eram lá dos meus sítios. Viviam os três juntos. Ela teve azar. Um, juntou-se com outra gaja, lá a deixou, lá foi embora, nunca mais apareceu. O outro anda lá fora, trabalhava nas obras, lá para a França, para aquelas terras todas. Fazia daquelas chaminés, dos fornos para fazerem pão. Era mais novo que a mim. Ela teve azar. Não fazia mal a ninguém. Não sei lá o que eles faziam. Agora está sozinha. Tem um filho, tem uns cinquenta anos, o filho, já. Também trabalha aqui no porto de Lisboa. A minha sobrinha tem ali uma casa, naquela rua. Gosta daqui da cidade. Ainda é nova, tem uns sessenta anos. Eu estou ao pé dela, estou sozinho e estou ao pé dela. Dou-lhe qualquer coisa, dou-lhe um xis, para o comer. Eu quando vim da terra vim para cá, vim aqui para a Graça, trabalhava num sapateiro. Depois um cunhado meu é que me arranjou trabalho para ir para essas vinhas no Cartaxo e por aí. Vinham daquelas serras, iam para o Cartaxo, para Vila Franca de Xira, para Santarém, para aquelas quintas. Cheguei a andar por lá. Trabalhava de noite e de dia. Vinha o capataz que arranjava trabalho, ia às terras buscar pessoas para trabalhar. Foi um cunhado meu que me arranjou o trabalho para ir para ali. Já morreu. Já morreram, os meus cunhados. Andava ali muita gente lá dos meus sítios, era gente aos montes. Viviam lá naquelas serras, naquelas barrocas. Havia um manajeiro e que ia buscar pessoal para trabalhar nessas vinhas, ali no Cartaxo e por aí. Tinham casas e tudo para nós. Acabou tudo, agora acabou tudo. Havia pouco trabalho naqueles tempo, éramos três irmãos, todos os rapazes, vínhamos todos para ali. Dantes no nosso sítio era só cavar as fazendas. Havia uns que eram caçadores. Havia muitos e quando chegava o domingo andava tudo com a arma às costas. Pagavam, não era?, pagavam a licença, tinham de andar com as armas. Eu não. Às vezes levavam-me com eles. Os meus cunhados é que iam. Eram caçadores. Lá no meu sítio naquelas serras havia coelhos, havia perdizes, havia tudo, não é? Acabou tudo. Acabou. Ainda há coelhos, mas já é pouco. Arderam aquelas serras todas, ardeu tudo com o lume. Era só serras ali. Agora acabou tudo, não há trabalho nem nada, Só esses que vêm de fora, da França e assim, compram tudo. Fazem ali as moradas e ficam lá a morar. Lá nos meus sítios há umas vinte pessoas que vieram de fora e fizeram lá casas. Têm vinhas, têm olivais, têm tudo. E eu um dia também vou. Tenho lá uma casa. Aqui a casa tem muitas escadas e custa-me muito a subir. Sou aleijado de uma perna e já me custa subir escadas. Foi um gajo, uma brincadeira. Havia lá na terra uma festa, assim no verão e eu estava na cama e ouvi a música que vinha de lá de muito longe para vir tocar na festa. Vinham a tocar aquelas cornetas. Cheguei lá e vi um rapaz. Eu ia a correr também, ia a passar. Ele tinha um embrulho e meteu lá chumbo e pedras e pólvora e eu ia a passar e apanhou-me numa perna. Eram paródias, a andarem aos tiros. Eu ia a passar e apanhou-me. Os chumbos eram grossos, foi um estouro que eu sei lá. Levaram-me para Coimbra. Passei um ano no hospital. O que é fiquei aleijado desta perna. Se eu tivesse ficado na cama, não apanhava aquilo. Mas a música vinha a tocar, era da parte da manhã. Vinham a pé para o meu sítio, tocavam aquelas cornetas, aquelas músicas e vinham até àquelas aldeias, Antigamente era assim. Havia muita malta nova. Era a festa do verão. Agora já acabou. Era em agosto. Uns a dançar, a música a tocar, uns a tocar concertina ou harmónica. Acabou a festa. Este ano já não há nada. Juntava-se ali muita malta, vinham daqui, vinham de um lado e doutro. Juntavam-se ali aos montes. Ali por aquelas serras havia muitas terras, muita gente. Mas não havia estradas. Era um deserto. Ali a gente para olhar só tem as serras, aquelas barrocas fundas. Não é como aqui. Aqui olha-se para qualquer lado e vê-se muita coisa. Eu não tenho mais nada que fazer. Venho para aqui para o jardim. Já não há cá ninguém do meu tempo. Apanhei isto na perna e nunca arranjei mulher. Às vezes no verão vamos lá, eu, a minha sobrinha e o filho dela e vamos à vila e compramos tudo para comer. Dantes lá na terra havia aquelas tabernas e vendiam tudo. Mas agora morreram todos. Não há nada. Agora tem de se ir à vila. Já não conheço lá ninguém. E aqui também não. Passo os dias aqui no jardim. Às vezes vou até lá acima à Graça. Ir para onde? Com esta perna tudo me custa. E custa-me subir as escadas. Esta perna não vale. Um dia vou para a terra. Ajusto-me lá com um restaurante e estou lá melhor do que aqui. O que é fico sozinho. Já não os conheço, os de lá. E cá também não. Morreram todos.

Ele é algarvio, Zé? Para usar a palavra ‘fazenda’ deve ser algarvio. Ou também se usa no interior?
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Molt desolació, en dies de dol.
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