A ocupação não figura nos impressos dos Censos, mas são muitas as pessoas que no nosso país se ocupam a poetar. É certo que é coisa que não se dá por ela a olho nu, mas isso é porque vivem num mundo paralelo. Um mundo feito de revistas que de tão discretas se diriam quase clandestinas, de publicações online que só os seus iguais conhecem e partilham entre si, em modestas edições de autor, plaquetes de tiragens paroquiais, e outras tantas maneiras de lançar urbi et orbi as suas mensagens na garrafa que tiverem mais à mão. Quem os ouvirá? É a isso que ninguém saberá responder. Uns aos outros? Nem isso? Onde está, como se configura, o muro insubstancial que separa esse mundo paralelo do mundo da gente comum, quer dizer do leitor comum ?
Na sua grande parte desconhecidos, ignorados fora desse círculo iniciático, mal surgem à luz do dia em momentos mais ou menos consagrados – convocados por alguma data, alguma efeméride, algum evento “cultural” onde se considere que a poesia não poderia deixar de figurar. As grandes editoras apenas “apostam” nos nomes conhecidos, nos poetas que já fizeram o caminho obscuro das edições de autor ou das pequenas editoras que não têm o mercado como critério único, normalmente de editores que amam tanto a poesia como os próprios poetas.
O percurso não é raro. Poetas como Manuel António Pina, como Fernando Assis Pacheco, para referir apenas dois que aprecio particularmente, começaram assim, em edições quase domésticas, para amigos e conhecidos, em folhetos às vezes simplesmente copiografados e agrafados, antes de a Crítica ou a Academia (e as Editoras) os irem resgatar ao que atrás chamei o mundo paralelo da poesia.
É como se houvesse uma espécie de limbo, de um Purgatório depurador por onde tenham de passar para conseguirem ascender acima do muro intangível que rodeia esse mundo onde a poesia ensaia o seu voo. E onde, antes disso, poucas vezes temos mais do que alguns versos (bons versos às vezes, grandes versos menos vezes), temos (ai!) rimas, temos muita verdade, muita realidade, muito sentimento, muito, mas raramente a chama que apenas poderia arder nos interstícios que a chamada realidade esconde. E que as palavras, só por si, não conseguem revelar, manietadas como estão pela instrumentalização a que a linguagem está sujeita pelas convenções da retórica ou das referências ao real.
A poesia, no fundo, reside precisamente naquilo que as palavras escondem.
Foi o que me veio à cabeça ao ler um livrinho (pouco mais de 50 páginas) que acabou de me chegar às mãos, intitulado “Um dia serei humano”, de João Cardoso Vilhena, um poeta que, precisamente, apenas conhecia desse “mundo paralelo” das revistas de poesia e dos sites ou blogues de poesia da internet. A impressão que me deu, ao pensar no caminho feito pelo autor desde os poemas iniciais que eu conhecia, foi a de um romper de amarras, do emergir de uma voz própria, do fulgor de “qualquer coisa” que se tenha soltado dos constrangimentos da linguagem comum. Como se tivesse rompido uma casca onde estivera a crescer e a amadurecer, é já nitidamente uma poesia que se libertou dos “tecidos que enformam as coisas” (cito um poema do livro) e “escapa à malha do pano e do nome / que como natural vem cosido às coisas.”
A editora (Uruatau) é brasileira, mas pelo que me disseram o livro será lançado em breve (e posto à venda, suponho) na Livraria Snob (Trav. Sta Quitéria, 32A, em Lisboa) no dia 29 de junho, às 6 da tarde. Para quem andar por esses lados, acho que vale a deslocação, como se diz para os restaurantes. E deixo um dos poemas do livro para amostra:

Anti-platónico
Essa amena ilusão familiar
de que o corpo é habitado
por um pensar em movimento
ora para fora ora para dentro
Ou circulando num interior que
não vemos mas cremos amplo
quartos salas sótãos e caves
onde nem sempre descemos
Como não acreditar que o que pensa
é só carne víscera carcaça
o que em nós há de mais animal
Que o próprio corpo se pensa
e vigia que o amador e a coisa
amada são um só ser que espia.
Obrigada pela sugestão. Já foi para a lista. Um abraço.
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