Deixem-nos dormir, p.f.

Já aqui falei há tempos numa fábula escrita pelo escritor chinês Lu Hsun (ou Lu Xun, não sei bem), mas vou contá-la outra vez para os que chegaram mais tarde. De certo modo, é também um atalho para falar no que aqui me traz.
É assim:
para explicar ao seu amigo  Chin Hsin-yi  as razões que o levavam a abandonar a escrita, desanimado com a indiferença que via na sociedade, apenas preocupada com o o sucesso material, Lu Hsun conta-lhe uma fábula:  “Imagina uma casa de ferro sem janelas, absolutamente indestrutível, com muitas pessoas lá dentro a dormir profundamente, e que em breve morrerão sufocadas. Mas tu sabes que elas, pois que morrem no sono, não sentirão os sofrimentos da morte. Agora imagina que se gritares alto poderás acordar alguns que talvez tenham um sono mais leve, mas fazendo com isso que esses desgraçados sofram a agonia de uma morte inevitável. Achas que estarás a prestar-lhes um bom serviço?” E então o amigo dele replica: “Mas quem te diz a ti que se acordares alguns deles não há esperança de que possam destruir por dentro a casa de ferro?”
Serve-me a fábula de atalho para chegar à questão (atual) das alterações climáticas, das catástrofes que arrastam consigo e dos esforços (em grande parte vãos) dos chamados ativistas climáticos para nos acordarem para os perigos que ameaçam a sobrevivência da nossa espécie e do sistema de que ela depende.

O que eles dizem (e o que diz a chamada Ciência, e dizem os dados do programa Copernicus e grita lá das Nações Unidas o pobre do António Guterres em todas as línguas que se esforça por saber) tem qualquer coisa de uma lei elementar da física: se atirarmos para a atmosfera mais dióxido de carbono, o planeta aquece e se o planeta aquece desencadeamos uma série de fenómenos meteorológicos que são muito capazes de trazer consigo uma data de chatices para as quais não estamos muito bem preparados, sejam elas inundações, incêndios incontroláveis, tufões, vagas de calor insuportáveis, destruição de colheitas, extinção de muitas espécies, e os variadíssimos édecetras de que todos já ouvimos falar. E dizem mais: se calhar não era má ideia – em vez de estarmos à espera que essas chatices se tornem incontroláveis, como já começa a acontecer – não era má ideia, dizem eles, travar o processo do aquecimento do globo. Como? O caminho mais direto seria o de pôr termo ao consumo de combustíveis fósseis (carvão, petróleo), por mais que isso pese ao nosso conforto e aos lucros das grandes petrolíferas.
Os tais ativistas dizem isto, mais coisa menos coisa, com um argumentário mais ou menos elaborado. E que dizemos nós, em troca? O que normalmente se ouve por aí vai do: “não há nada a fazer, são coisas que sempre existiram,” até ao “podia estar de acordo com o que eles dizem, mas não com a maneira como o fazem”. É que as movimentações dos ativistas muitas vezes deixam as pessoas chateadas, com os seus cortes de estradas, as suas marchas lentas, as ocupações de instalações e essas coisas um pouco disruptivas que se vêem na televisão e que fazem com que as pessoas cheguem atrasadas a casa e ao início do jogo ou da novela.
E também não estamos habituados a este novo tipo de contestação, tão diferente dos movimentos revolucionários dos bons velhos tempos. Estes, agora, não visam instaurar um novo tipo de sociedade, não aspiram a ser os novos governantes ou mandantes, não invocam nenhuma filosofia capaz de explicar toda a realidade, e toda a História, e toda a sociedade. E ainda por cima usam processos não hierárquicos nas tomadas de decisão, sem Eus nem chefes, e apontam para objetivos que as pessoas (pessoas razoáveis, como nós) consideram inalcançáveis, ou irrealistas, ou… nem sei o quê. Mas que querem eles, afinal? desabafamos então. Como dantes desabafavam os que se viam confrontados com movimentos tão inorgânicos como estes que se lançavam a tomar Bastilhas, a derrubar Muros de Berlim, ou a exigir o voto para as mulheres, outros tantos objetivos irrealistas e inalcançáveis.
Ninguém sabe bem o que se lhes há de fazer. E não encontramos outra resposta que não seja a do costume em casos destes, quando não queremos dar ouvidos às questões com que nos confrontam: mandamos a polícia, que é o que temos mais à mão e entregamo-los aos tribunais parados no tempo sem se aperceberem que o mundo porém se move, eppur si muove, como dizia o outro.

Bem, o atalho da fábula acabou por vir dar aqui, que era o que eu ia a dizer: é hoje o julgamento do João e dos outros dois detidos na Visita de Estudo ao Ministério do Ambiente, no já distante mês de novembro. Sugiro aos que chegaram atrasados e não sabem do que se trata que vão ler o artigo “Encaminhados ao solo” (https://zelima388727646.wordpress.com/2024/03/14/nas-maos-da-justica/), publicado neste blogue em 14 de março – se estiverem interessados, claro. Mas olhem que é uma boa amostra das boas maneiras com que a polícia atua quando não sabe como há de atuar.
Vamos lá ver o que sai dali (do julgamento, quero eu dizer). Talvez que o juiz do julgamento consiga ouvir o juiz da fase preliminar quando escreveu que “resulta clara a insuficiência de indícios que permitam concluir pela verificação do crime de ofensa à integridade física dos agentes”. Haja esperança.
Disse também o sábio do Lu Hsun, que ando agora a descobrir: “Não se pode dizer que a esperança existe, nem que não existe. É como os estradas que atravessam a terra. Porque, na verdade, a terra não tinha estradas no início, mas quando muitos homens passam por um caminho, a estrada faz-se.”
Mas para isso há que nos pormos ao caminho, claro.

One thought on “Deixem-nos dormir, p.f.

  1. Zé, só cheguei há pouco a casa e acabei agora de ler o teu e-mail. Adorei a fábula e quanto a tudo o resto partilho quase todos os princípios enunciados, apesar de também não vislumbrar como conseguir uma nova ord

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