Dois pesos e duas medidas

Gaza, ainda.
Com a passagem do tempo, os números vão substituindo as palavras ao descrever a realidade. 22 mil mortos (70% mulheres e crianças), 5 mil desaparecidos, do lado palestiniano. Cerca de 1500 mortos do lado israelita. Um milhão e meio (85% da população) de deslocados em Gaza. 23 (de 36) hospitais destruídos; 104 escolas arrasadas. Sem falar na falta de água, de alimentos, de eletricidade. Os números têm este efeito: de embotar as emoções, de esconder a realidade ( a ralidade, “essa megera sem idade, sem tempo, sem fronteiras”, dizia o Manuel Resende. E sem rosto, sem nome, acrescento eu agora).
Um sobressalto, quase inesperado, quando aparece alguém com um nome, um rosto. Quando, por exemplo, ouvimos a gravação em direto do assassinato de uma menina de 6 anos (chamava-se Hind), morta a tiro pelos tanques do exército israelita (tanques!!) quando estava bloqueada dentro de um carro, no meio dos cadáveres da família. Ou quando há dias o exército israelita matou sete membros de uma organização internacional que distribuía comida à população. O itinerário e o local dos carros em que seguiam tinha sido comunicado ao Exército. Tinham nome: John Chapman, James Henderson, James Kirby, Lalzawmi (Zomi) Frankcom, Jacob Flickinger, Damian Sobol, Saif Issam Abu Taha.
É só então que a guerra, a fome, a miséria, os crimes, ganham para nós alguma realidade.
E é por isso que, antes que tudo isso, que esses nomes, se diluam no mar dos números cada vez mais avassalador (e anestesiante) há coisas que é preciso ficarem ditas.
Para que a Terra não esqueça.

Há que falar no crime sem nome, na chantagem despudorada, do Hamas ao continuar a reter os reféns do ataque que desencadeou esta guerra (mais um episódio de uma guerra antiga). Sujeitos a todo o tipo de torturas, de humilhações morais, físicas e sexuais, esses reféns tornaram-se para o Hamas em “moeda de troca” numa negociação com assassinos dos dois lados. Não podemos pactuar com isso. Não se pode resgatar um crime com outro crime.
Há que falar também na implacável máquina de morte instaurada pelo Exército israelita: a concentração forçada da população, refém no seu próprio país; os ataques a pessoas indefesas; as destruições de hospitais, escolas, infraestruturas e de tudo o que faz falta a um mínimo de dignidade na vida. Para onde irão os deslocados, se nem casa já tem para onde voltar? E nenhum “Exodus” os levará para refúgio nenhum.
Os crimes do Hamas não podem ser usados para Israel invocar imunidade para os seus próprios crimes contra uma população indefesa. Nem sequer – é terrível dizer isto, mas há que o dizer contra tudo e todos. Agora – nem sequer as perseguições de que foi vítima ao longo da História, deveriam permitir a Israel invocar imunidade para os crimes que agora comete contra uma população indefesa.
Aqueles que em tempos defenderam o direito do povo judeu a uma pátria, os que viram no novo país, na cultura comunitária dos kibbutzim, um sinal de paz para o futuro, são os mesmos que hoje não se podem calar diante da infâmia a que assistem.

Há tempos, uma amiga (judia, por acaso) com quem discutia a situação em Israel – por altura do assassinato de Yitzhak Rabin – dizia haver dois pesos e duas medidas na opinião europeia. Ela dizia “double standards”, mas vem a dar no mesmo. Concordei com ela. Somos mais exigentes com Israel. Em nome dos valores que partilhamos (ou dizemos partilhar, e que usamos como argumentos na defesa de Israel). E sobretudo, sobretudo, era o que eu lhe dizia, porque ao criticar Israel tínhamos a noção de que havia a possibilidade de mudar o seu comportamento. Havia a possibilidade de corrigir os seus erros – havia em Israel instâncias, instrumentos capazes de dar ouvidos às críticas. Havia também em Israel vozes que se levantavam e se faziam ouvir, as vozes dos justos, como dizíamos.
Havia – mas ainda haverá?

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