Para não dizerem que

Estive agora a falar com o Jean Némar. Tinha lido o postal sobre os pintainhos, tinha ficado impressionado, tinha perdido o apetite e tinha umas coisas para me dizer. E o que ele me disse foi que achava que havia aqui demasiadas guerras, demasiados massacres, demasiadas nuvens negras sobre o planeta inteiro, que já de si não anda muito desanuviado. Dizia ele: “Ó homem, mas tu não verás mais nada senão desgraças? Não tens mais nada de que falar?” E tenho, por acaso tenho. E para não me virem mais com essa, hoje vou falar de flores.
Das que eu mais gosto, que são essas que andam por aí à solta e não se vendem nas floristas. Nos meus passeios pelo bairro e arredores, passo às vezes por descampados onde o meu cão gosta de ir cheirar as novidades e os recados que os amigos dele lhe deixam e onde proliferam estas flores despretensiosas. Já tenho trazido muitas para casa, que depois planto em vasos. Papoilas, as minhas preferidas, mas também soagens, pampilhos, borragens, o que estiver à mão, consoante as estações. Não se têm queixado muito da mudanças de ares, talvez por estarem um bocadinho fartas do isolamento em que viviam e do cheiro dos escapes. Uma soagem que cá tive cresceu tanto tanto que ainda estou para perceber a razão de tal mistério.
Não é só nos descampados. Também as ruas começam a dar sinal da primavera que aí está a chegar. Alinham-se ao longo dos passeios, contra as paredes para fugir aos carros e às pisadelas e formam quase uma guarda de honra para nós que passamos. Há quem se insurja, que ache isto uma pouca vergonha, uma prova do desleixo da junta de freguesia ou da Câmara. Não sei porquê. As ruas ficam muito mais bonitas, um ajardinamento improvisado e ao gosto de cada estação. Não são nenhum empecilho para quem vai no passeio e até as abelhas aproveitam. Veja-se este friso de dentes-de-leão que surpreendi na rua aqui perto, por onde passo tantas vezes. Despontaram de um dia para o outro, a seguir às chuvadas que tivemos a semana passada. E logo trataram de mostrar o que valem, que é pouco o tempo que lhes é dado antes que qualquer lufada de vento lhes leve as cabecinhas diáfanas a semear a sua sementinha por tudo quanto é sítio. Tão leves, tão voláteis e tão volúveis que há também quem lhes chame “amor de homem”.
Pronto, aqui fica. Para não dizerem que não falei de flores.

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