Salvem os pintainhos (e a Humanidade, já agora)

Não sei se quem me lê terá visto uma reportagem que passou há dias na televisão. Para minha desgraça, eu vi. Vejo pouca televisão, mas às vezes depois do jantar ponho-me a zapar pelos canais fora. Azar meu, há uma qualquer pontaria oculta nisto que me leva mais vezes do que as que eu gostaria para cenas e filmes que depois ficam a assediar-me o sono. Foi o caso. Era uma reportagem sobre a criação de galinhas poedeiras e o trágico fim dos pintainhos machos que elas geram. Mal os pintainhos saem da casca, antes de terem tempo de ir direitos à ração como lhes estava a apetecer, sai-lhes. ao caminho um senhor especialista em sexação (raio de profissão!), capaz de distinguir pintainhos de pintainhas e que trata de separar o destino de cada qual: eles para um lado elas para outro. Elas para uma vida feliz de poedeiras como a mãe, que vão pôr imensos ovos para o mercado e para criar mais galinhas poedeiras e por aí fora. Eles é que não: eles (e aqui peço às pessoas mais sensíveis que passem para o parágrafo seguinte) eles são atirados para uma espécie de liquidificador onde são sujeitos a um processo a que na indústria da especialidade chamam “maceração” que é a maneira como não se deve dizer atirados vivos para uma amálgama de pintos, penas, ovos inférteis e cascas de ovos para serem triturados. A pasta sanguinolenta que daí resulta é depois tratada e desidratada. Há quem use isso como fertilizante; outros (e acho que em Portugal são destes) transformam essa papa numa farinha proteica que depois usam como ração para cães e gatos. Eu sei que dá vontade de passar já-já a vegetariano, e ir daqui assaltar aviários para libertar os pintainhos tão fofinhos condenados a morte tão macaca. Os dos aviários defendem-se com um ar falsamente compungido e dizem que essa é a maneira de não desperdiçar nada (e são dezenas de milhar de pintainhos por mês, em Portugal; e sete mil milhões por ano no resto do mundo) e também de evitar uma subida de cerca de 50% nos preços dos frangos caso se renunciasse à prática. Será que haveria assim tanta gente capaz de renunciar ao seu belo frango no churrasco a preços acessíveis se lhe dissessem que com isso salvava a vida (querem lá saber, eles que os vão comer!) dos desgraçados dos pintaínhos?

Mas claro que não gostamos de saber estas coisas, nós, que somos pessoas sensíveis, daquelas que não matam galinhas (embora comam as galinhas que outros matam). E logo nos luz o olhinho compassivo ao sabermos que na Suíça a tal sexação está proibida – os avicultores estão obrigados a adquirir um espectrofotómetro, que é a designação popular para as máquinas de fazer a distinção sexual ainda no ovo. Com essa prática bem mais humanizada o pintainhos deixam de ser tão desumanamente trucidados e são humanamente liquidados ainda antes de nascer. É o que se faz também na Alemanha e na França.
Mas haverá alternativa, mais bioética, digamos assim, que nos poupe aos escrúpulos que um bom frango na púcara se prepara para nos impor cada vez que nos é proposto no menu do restaurante de que nos recomendaram a especialidade? Sim, por exemplo os dois grandes gigantes da produção de frangos e de ovos, a Coop Suíça e a Coop Itália, permitem que todos os pintainhos da galinhas poedeiras, sem distinção de cor, raça ou género, possam nascer e crescer. Embora com distintos destinos, claro: elas para serem poedeiras; eles (embora cresçam menos que pintainhos das galinhas para carne) para crescerem livres da trituração e acabarem antes daí a uns mesitos no prato ou na púcara de uma data de restaurantes.

Tudo isto me deixou a pensar numa data de coisas. Algumas é fácil de imaginar quais serão e prefiro não falar mais nisso. Mas depois pensei também que o abandono e a proibição da prática da trituração adoptada em França, Alemanha e outros países europeus, vencendo a resistência da indústria avícola não se deve provavelmente aos corações mais sensíveis dos deputados ou dos governantes desses países. Para a decisão dos parlamentos e dos governos ter sido possível foi preciso, primeiro, que tivessem tomado conhecimento do horror da tal maceração ou sequer para saberem da existência de tal prática; foi preciso, em segundo lugar, estarem preparados para vencer a resistência que forçosamente seria levantada pelos avicultores e agricultores – e sabemos como eles não são nada bons de assoar e como funcionam à base de argumentos mais palpáveis do que os bons sentimentos. O governo francês, por exemplo, foi ao ponto de subsidiar 40% do preço dos tais espectrofotómetros.
E chegamos ao ponto onde eu queria chegar: para vencer a resistência da indústria dos frangos e dos ovos – que todo o bom deputado e governante logo traduz em números de votos e em verbas orçamentais – teve de intervir uma força maior a acenar-lhes com um maço de votos ainda mais gordo e mais poderoso. Teve de haver gente que se mobilizou para lhes mostrar o hediondo daquelas práticas, para fazer lóbi e petições e mobilizar a opinião pública.
Se querem saber a verdade, são coisas como estas que podem ainda fazer-nos alimentar alguma esperança na Humanidade: que haja pessoas que se movam por tais causas sem que as mova o cálculo económico ou político ou a sede de poder (os pintainhos não votam, nem vão organizar nenhuma homenagem pública de agradecimento). E quem diz pintainhos, diz ursos polares ou baleias ou linces ou qualquer outro destes nossos companheiros de aventura num planeta onde viemos calhar sei lá como).

PS: queria pôr na foto apenas as galinhas, para se apreciar a estreita camaradagem que existe entre elas. Talvez até estreita de mais, dirão elas. Mas este senhor pôs-se no meio e ficou na foto também. Espero que não leve a mal.

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