um canário na mina

ultimamente vejo muitas vezes ursos polares nas notícias. Não propriamente por serem tão bonitos e oferecerem aos fotógrafos da National Geographic e companhia boas capas de revista e boas imagens. Pelo contrário, este interesse inusitado pelos coitados dos ursos deve-se às piores das razões. É que os ursos polares que hoje vemos são talvez os últimos que a humanidade verá.
O ritmo a que o gelo do Ártico está a derreter tem-se acentuado, à medida que a temperatura do planeta sobe. Sem gelo, vão-se as focas dos blocos de gelo, e sem focas os pobres dos ursos ficam sem os alimentos que lhes permitem sobreviver. Há uns que passaram a prolongar os períodos de sono para reduzirem o consumo energético, uma espécie de falsa hibernação estival; outros entram pela terra dentro à procura de ovos, bagas de plantas, carcaças de aves, e o que apanham capaz de enganar a fome, embora com um teor calórico muito inferior ao da alimentação habitual. De nada lhes vale: os cientistas que têm estudado o fenómeno calculam que os ursos polares estão a perder uma média de um quilo por dia durante o verão polar. Muito provavelmente estarão não tarda muito condenados a morrer à fome. E à extinção da espécie.

“OK, os ursos polares desaparecem, é chato, mas que mal vem daí ao mundo?” dirá o bom do Sr. Silva, que só aqui trago para ilustrar essa displicente indiferença que grande parte de nós exibe diante dos males do mundo (com desculpa aos Silvas da vida real, que como todos bem sabemos não são nada assim). E realmente o mundo pode muito bem passar sem ursos polares. As focas não vão ter saudades deles. O mundo continuará a girar imperturbável em torno do seu eixo imaginário à razão de uma volta por cada 24 horas. A vida (isto é, uma parte da vida) continuará igual. A nossa vidinha muito longe do Ártico continuará como se nada fosse.
E o Sr. Silva, e todos os que pensam que daí não vem nenhum mal ao mundo, desde que a sua vidinha possa continuar (quase) inalterada dirão o mesmo se lhe forem falar de todos os outros animais que estão a desaparecer – desde uma grande parte dos insectos (muitos deles polinizadores, de que depende a sobrevivência de muitas plantas) até aos elefantes asiáticos, ao tigre de Bengala, ao atum do Mediterrâneo e outros que vão desaparecendo aos poucos, sem aviso prévio. Tudo bem, para o Sr. Silva, desde que não lhe tirem as vaquinhas no prado e os bifes no prato.
Mas o problema é mais do que isso, e não é só dos ursos: a fusão dos gelos polares, o aumento da temperatura dos mares é apenas um elo num sistema em que tudo está encadeado. A seguir vêm as alterações climáticas que lhes estão associadas, os incêndios desenfreados, as inundações, os tufões e uma data de desastres incontroláveis (como já se vai vendo vendo um pouco, mas muito pouco ainda). E que não páram de aumentar, porque não diminui nenhum dos fatores que as determinam. Ao aumento da temperatura média do planeta, fundamentalmente causado pelo consumo desenfreado dos combustíveis fósseis que alimentam a nossa concepção de progresso e de bem estar, junta-se a desmatação de grandes áreas florestadas, o uso intensivo de pesticidas e de adubos químicos que depois contaminam os lençóis de água subterrâneos. E assim por diante, não quero assustar ninguém, e muito menos o Sr. Silva no seu santo sono feito de ignorância e bonomia. Até ao dia em que o Sr Presidente, ou o Sr Ministro, ou a dura realidade dos factos determinem cortes de água durante dois dias na semana. De três dias, mais tarde. De reservar o consumo de água da rede pública a hospitais e a campos de golfe turísticos indispensáveis à economia local. É que há já aldeias na Europa que são alimentadas por água vinda de fora. Os lençóis de água local estão contaminados e são impróprios para consumo. E mesmo as vaquinhas e os bifes estão comprometidos: com o racionamento da água não há prados verdejantes nem vaquinhas nem bifes, para grande desgosto do Sr. Silva. E, o que acontece com a água, acontece com muitas outras coisas: este processo, sem um travão imediato, levará a inevitáveis cortes de muitos dos consumos em que assenta o nosso estilo de vida atual e de que não parecemos muito dispostos a abdicar. Os dirigentes políticos e os candidatos a dirigentes, parecem também temer as birras dos eleitores, e preferem continuar a dar-lhes (ou pelo menos a prometer-lhes) a sobremesa que eles exigem. Umas generalidades bem intencionadas nos programas, que ficam sempre bem e consolam as consciências inquietas, mas nada de medidas concretas, de prazos, de planos capazes de pôr um travão no processo. E sempre projetos de mais, mais, mais tudo – até não haver mais nada.

De certo modo os ursos polares, uma das primeiras vítimas deste processo de aquecimento global, são o nosso “canário na mina”. Os canários eram usados pelos mineiros das minas de carvão como uma espécie de sinal de alarme. O pobre do canarinho era o primeiro a sofrer as consequências da presença de gases tóxicos, como o monóxido de carbono, totalmente invisível e inodoro. A morte do canário era o sinal para os mineiros fugirem e salvarem a pele.
Assim estão os ursos; e assim servisse o aviso deles para nos levar a procurar uma solução para nós.
Ou melhor: o nosso verdadeiro “canário na mina” são os ativistas climáticos. Que apesar de continuarem a ser atacados e ridicularizados, a ser detidos e levados a julgamento, a ser criticados pelos métodos que usam, continuam a querer chamar a atenção para um problema que no fundo é um problema existencial para o planeta e para nós.
E se em vez de serem criticados fossem ouvidos? Se em vez de atacar o mensageiro, decidíssemos ouvir a mensagem? Os métodos que usam são os métodos do desespero, e de quem não tem outros.
Fazem-me lembrar uma fábula, que li há muito tempo, do escritor chinês Lu Hsun. E que lhes vou contar já a seguir, se prometerem ouvir com atenção e respeitar a lição do grande mestre.
Lu Hsun deixara de escrever, desanimado com a indiferença que via na sociedade, apenas preocupada com o o sucesso material. O seu amigo Chin Hsin-yi procura dissuadi-lo e Lu Hsun explica-lhe as suas razões. Diz ele: “Imagina uma casa de ferro sem janelas, absolutamente indestrutível, com muitas pessoas lá dentro a dormir profundamente, e que em breve morrerão sufocadas. Mas tu sabes que elas, pois que morrem no sono, não sentirão os sofrimentos da morte. Agora imagina que se gritares alto poderás acordar alguns que talvez tenham um sono mais leve, mas fazendo com isso que esses desgraçados sofram a agonia de uma morte inevitável. Achas que estarás a prestar-lhes um bom serviço?”
E então o amigo dele replica: “Mas quem te diz a ti que se acordares alguns deles não há esperança de que possam destruir por dentro a casa de ferro?”
Mais coisa, menos coisa, era assim a fábula de mestre Lu Hsun. E a minha pergunta agora, aos que a leram, é esta: haveremos de mandar calar aqueles que procuram com os seus gritos desesperados acordar-nos do sono em que jazemos inconscientes?

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