Leio:
“Em Gaza não há eletricidade. Israel bombardeou a única central elétrica que lá havia, e mais de metade do fornecimento de energia ficará cortado durante pelo menos mais um ano. (…) Uma passagem que não deveria ter nenhuma presença israelita continua a ser o meio usado por Israel para pressionar 1,5 milhões de palestinianos. É uma punição coletiva miserável e chocante. (…) Gaza está mais pobre e faminta do que nunca. Para já não falar das mortes, da destruição e do horror. Israel bombardeou, assassinou, destruiu e ninguém o deteve. Nenhuma célula Quassan nenhum túnel secreto justifica um massacre de tal escala. Não se passa dia nenhum sem mortes, a maior parte delas de civis inocentes.
Onde vão os tempos em que ainda havia debate em Israel sobre tais assassinatos? A semana passada no Hospital de Shifa, vi cenas de partir o coração: crianças que tinham perdido pernas e braços, em respiração assistida, paralisadas, estropiadas para o resto da vida. Famílias inteiras foram mortas enquanto dormiam em casa ou se deslocavam de burro ou trabalhavam nos campos. Crianças aterrorizadas, traumatizadas por tudo a que tinham assistido, encolhidas em casa com um horror nos olhos que é difícil descrever em palavras.
A nossa força aérea bombardeia e arrasa “alvos”, por vezes “estruturas”, dizem-nos; nunca casas. Israel exige uma “zona de segurança” em Gaza, e essa segurança é sempre a nossa, só a nossa. Apenas a minha colega Amira Hass, do jornal Haaretz, ousa, com a sua conhecida coragem, chamar aos milhares de recentes sem-abrigo de Gaza – tornados sem abrigo por nós – aquilo que que eles são: “”refugiados”. Refugiados pela segunda e terceira vez na vida deles; apenas Amira Hass ousa chamar-lhes “pessoas deslocadas”. Mas estes deslocados não têm lugar nenhum para onde escapar aos horrores da guerra. (…)
Um jornalista israelita pode ir para a Síria, para o Iraque, para a Arábia Saudita, mas não para Gaza. Foi imposto um completo blackout em Gaza. (…) Gaza tornou-se num território vedado, sem cobertura mediática nem documentação. É esta a liberdade de imprensa israelita.”
Nada disto nos parece novo. E não é. Foi escrito em Setembro do ano de 2006.
Aquilo a que hoje se assiste em Gaza é uma repetição de outras ocupações, outros massacres, outras “limpezas”. Desta vez ainda testemunhadas por jornalistas.
Neste caso, por Gideon Levy, do jornal israelita Haaretz.
Não é fácil para nós, que o lemos longe e em paz, medir a coragem que é preciso a um israelita hoje em dia para conseguir ver e dar testemunho para além das barreiras que lhe são impostas. E vencer os preconceitos e os ódios que o rodeiam. E é preciso notar – antes que se esgrima o “mas” do costume – que Levy não é “antissemita”, não é contra a existência de Israel, não é indiferente nem silencia os crimes cometidos contra Israel. “Considero-me um patriota israelita. Quero ter orgulho do meu país, coisa que cada vez se torna mais difícil para aqueles israelitas que partilham as minhas convicções. Acredito também que apenas aqueles que protestam contra as políticas de Israel – que denunciam a ocupação, o bloqueio e a guerra – são os verdadeiros amigos da nação.”
Há mais de trinta e cinco anos que o faz, que tenta “registar a crescente – e cada vez mais rápida – acumulação de crimes de guerra e de abusos dos direitos humanos” cometidos por Israel. Alguns dos artigos publicados no Haaretz foram mais tarde reunidos num livro (que ele escreveu em hebraico e em inglês): “The Punishment of Gaza” [“A Punição de Gaza”]. O propósito de Levy (nas suas palavras): “Apelo a todos os israelitas que se insurjam – ou pelo menos compreendam o que está a ser perpetrado em nome deles, para que nunca possam ter o direito de alegar: Não sabíamos.”
É esse livro que ando a ler. Fala do que se passou em Gaza entre 2006 e 2009. Mas quase parece que nos fala do que hoje se está a passar. Os mesmos crimes. Pior, talvez.
