ele há iscrita & escripta

Já há muito que andava para convidar o Queneau, o Raymond Queneau, para aparecer por aqui a dar um arzinho da sua graça. Desocupado como está, desde que em 1976 o levaram para o Cemitério Antigo de Juvisy-sur-Orge, não muito longe de Paris, disse logo que sim. E cá o temos.
Ainda julguei que nos iria falar do OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle (mais ou menos “Oficina de Literatura Potencial”), de que foi um dos fundadores, dedicado à composição literária baseada em em processos formais ou matemáticos rigorosos, e que viria a incluir outros da família, como Calvino e Perec. Ou julgava eu que iria falar da sua experiência no Collège de Pataphysique, para onde entrou em 1950, que assentava no Princípio fundamental da equivalência de todas as coisas, ou, na fórmula sintética de Vian, em “pensar nas coisas em que nós pensamos que os outros não pensam”. Podia ter a sua piada, até porque por lá andou gente tão original como Max Ernst, Man Ray, Jacques Prévert, Michel Leiris, Boris Vian, Ionesco, René Clair e uma data de surrealistas.
Mas não, não era disso que Queneau queria falar. Tão-pouco do seu estudo sobre os “loucos literários” ou da sua “Enciclopédia das Ciências Inexactas”. Não, do que ele queria falar era da proposta do “neo-francês” que ele expôs no livro agora quase esquecido “Bâtons, chiffres et lettres” e que, por singular coincidência, vejam lá, eu ando a ler neste momento. Não me pareceu particularmente entusiasmado, o Queneau, aqui muito entre nós o digo. Talvez por já por volta de finais dos anos sessenta ter chegado à conclusão de que o neo-francês era uma ideia sem futuro. Desistira. Por isso, voltar agora ao assunto era talvez a maneira de ele nos dizer: “mas olhem que…”

Nesse livro que ando a ler (formado por vários textos dispersos, de 1937 a 1955), Queneau explica como a distância entre o francês falado e o francês escrito se ia tornando cada vez maior – desde formas verbais que desapareciam na língua falada, até às grandes diferenças no vocabulário e até na sintaxe. “Escrevemos uma língua morta…”, conclui. A língua viva esbraceja e definha sob as peias e os preceitos da sintaxe e da ortografia oficiais. A literatura, essa, vive num reino à parte. Quando se arrisca fora dessas fronteiras, é o sobressalto, quando não o escândalo ou a censura. Céline é um bom (e raríssimo!) exemplo: com ele, finalmente, surge na literatura o francês falado, moderno, tal como ele existe. Queneau, até certo ponto, também o tentou, em livros como “Zazie dans le métro”. Antes de Céline (e depois dele, ainda…) o francês real, o francês falado, limita-se quando muito aos diálogos e quase sempre em assomos de calão ou a imitar a “linguagem vulgar” de personagens marginais, ou dos meios ditos populares. Um toque destinado a criar um efeito “de genuíno, de autêntico, de pitoresco, de povo”, como a crítica não deixará de salientar.
O grande projeto literário de Queneau passa a ser, desde que toma consciência do problema, o de tentar aproximar esses dois extremos. Para isso seria necessário, diz ele, uma tripla revolução: do vocabulário, da sintaxe e da ortografia. A ortografia – uma convenção que assenta sobretudo na “influência nefasta dos pedantes [do século XVI]” não passaria de um culto de uma memória dos puristas. E conclui, citando o linguista Vendryes que o inspira: “O que uma convenção fez, outra convenção pode desfazer”. É desta ideia que nasce o projeto do “neo-francês”, uma língua em que a escrita assentaria na regra fundamental da ortografia fonética, em que todas as letras se pronunciam e sem nunca mudarem de valor, qualquer que seja a posição que ocupam em cada palavra.
Não é difícil imaginar u iscândalo questa proposta iria causar se fose levada à letra. I maizainda salém da urtugrafia também a sintase e u próprio vucabulário segisem u mesmo príncipio: escreve-se uque sdiz i como sdiz.

Mas, naõ vá o senhoor pároco ver aqui rrezam per hua igual mudãça antre nós, & porque tã bem nam desejo tam asinha a minha mofina fym, tornemos jaa a lingoa às talas e à forma [leiase fôrma] em que ella deve fycar muy sossegada & fermosa & dina pera todo ho sempre. Asi a fizerão antes, da mesma maneyra deve ficar despois & eternamente. E se dahi resultar que a orthographia leixe aos vyndoyros esse grãde abysmo entre o que é dyto e o que é scrito, asi ficará todavya por mays abyssal que seja o abysmo.
Con “y” se faz favor, para fazer a vontade ao ooutro.

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