ainda não me saíram da cabeça os “verdadeiros portugueses” de que agora tanto se fala por aí. Faz-me espécie aquele “verdadeiros”, mas para dizer a verdade até aquilo dos “portugueses” me dá que pensar. Porque, se formos a ver bem, é coisa que tem que se lhe diga, pois o que, ou quem, são os portugueses? O que conta nisto de se ser português? O bilhete de identidade, ou cartão do cidadão, é isso? Hão de logo dizer que ter um cartão não faz de ninguém um português. Fará dele um cidadão, com os seus direitos, os seus deveres e tal, mas “ser português” é outra coisa. Qualquer coisa de mais… nem sei como dizer, de mais intangível, de mais profundo. Qualquer coisa capaz de nos ligar mesmo a um desconhecido encontrado noutro país, no meio de uma multidão indistinta. De entre todos, é para esse que somos atraídos, com quem nos irmanamos, com quem partilhamos… o quê? E é aqui que bate o ponto.
Sem o dizermos, pressentimos que há um sem número de coisas que nos liga entre nós, e que nos separa de todos os mais. Nem sempre coisas identificáveis, racionais – antes uma miscelânea de imagens, fantasias, símbolos, mitos, vivências e coisas que tais a que nem sequer saberíamos dar um nome. Tudo colado com um cuspo a que à falta de melhor chamamos o imaginário português, aí onde podem conviver alegremente as cinco quinas de Cristo; a virgem alcandorada numa azinheira; as plangentes areias de Alcácer Quibir; um nebuloso quinto império que nos está talhado e só não sabemos ainda para quando; a nossa pícara peregrinação por índias e brasis, por franças e araganças, ou a memória do que disso resta; o clamoroso remate do Éder, ou do Figo ou do Eusébio; e às tantas até as pataniscas de bacalhau e outros milagres que mais ninguém, senão um “português”, poderia entender e partilhar. Por mais atualizado que seja o seu cartão de cidadão, que emigrante recém-chegado as poderia partilhar, com a mesma unção, ou devoção, ou alegria? É esse consenso quase místico dessa quase mística salada de símbolos, códigos, rituais que se amalgama no imaginário coletivo e dá sentido e lógica ao que de outro modo não passaria de uma coleção de imagens e ideias sem qualquer conotação afetiva.
Teremos então aqui o cimento que nos une, a chave do segredo d’ “os verdadeiros portugueses”? À falta de melhor, é muito capaz de haver muita gente que se contenta com isso. Ou pelo menos que não se dará ao trabalho de escavar mais fundo.

Mesmo que de pé atrás quanto a certezas tão ambíguas, imagine-se o meu desconcerto cada vez que ao descer a Calçada de Santo André, perto de minha casa, me vão dar os olhos à placa que assinala o Beco do Imaginário. Não é que confunda as coisas (ainda não!), mas, assim de repente, é como se a incerteza me atacasse de dúvida em riste. Pois teria ele chegado a um beco sem saída, o nosso imaginário? Começo, mesmo sem querer, a vacilar. Serão afinal cinco? ou mais? ou menos? as tais quinas e/ou chagas de que nos falam na escola? E não é verdade que a Virgem, mesmo sem azinheiras à mão, desceu à terra também noutras terras, em grutas, em penhas e penedais? E não é mais que certo que mesmo sem bacalhau outros farão pataniscas por esse mundo fora com o que mais lhes calhar? E, ainda que sem o mesmo poder simbólico, ainda que sem o palavrão do Éder, não houve outros a marcarem golos igualmente memoráveis nos muitos campeonatos que por aí abundam?
Percebo como é bem possível que neste ponto o Imaginário se ponha a recuar, a hesitar, acuado contra a sólida realidade de um mundo onde a partilha e o consenso se podem alimentar de coisas bem menos fantasmáticas do que as quimeras e as projeções com que alimentamos a nossa insegurança.
Há que escavar mais fundo portanto. À descoberta de uma saída para este beco agourento até que dessa arqueologia forçada traga à luz a verdade redentora: o imaginário português está, afinal, a salvo. O imaginário – este aqui do beco – é bastante menos nebuloso, ainda que talvez menos poético: era simplesmente um artífice que esculpia imagens religiosas, tão antigo que já o referia o Registo Paroquial da freguesia dos Anjos de 1603, dizendo de alguém que era “morador à Calçada de Santo André, junto ao imaginário”. Que o beco lhe tenha ficado com o nome, nada de mais natural. Mas que venha agora inquietar-nos com as dúvidas que lança sobre coisas tão certas como o nosso Imaginário, o outro, isso não lhe posso perdoar. E às tantas nem tal lhe consentiriam as regras estritas do Regimento dos Ensambladores, Entalhadores e Imaginários, que pelo menos desde 1549 regia a profissão.