post scriptum

Levado pelo acaso, fui parar a uma zona por onde agora não ando muito. Ainda Lisboa, mas com qualquer coisa que nos faz sentir vagamente despaísados. Afastamo-nos umas ruas da nossa órbita de todos os dias e logo tudo nos parece outro planeta. Outra gente, outras lojas e até os escritos nas paredes nos falam de coisas de que não tratam as paredes do nosso bairro. “Autodeterminação trans já!”, dizia este. Estaquei, interdito. O que mais me baralhou, assim de repente. foi aquele “já!” – impaciente, peremptório, quase intimidante. Foi como me soou, a mim, que estava ainda a tentar perceber o que poderia ser a “auto-determinação trans”. Sabia mais ou menos o que era “auto-determinação”, sabia também menos ou mais o que era “trans”, mas não percebia o que estavam ali a fazer juntas as duas palavras. Admitia à partida que quem tal escreve deve sabê-lo. Também eu escrevedor de paredes nas minhas horas, conheço o rigor das normas não-escritas do ofício – os riscos e a escassez da matéria prima obriga a poupar as palavras, a escolher as mais diretas, as mais claras, as mais incisivas. Nem sempre assim será, bem sei, mas quis pensar que também este aqui saberia o que nos estava a ditar com aquele imperativo: já!
Ou não, vamos lá a ver. Talvez não houvesse ali nada de ameaçador, talvez fosse antes um apelo, uma maneira de nos mostrar como sentia a urgência do que nos era proposto. Um gesto que no fundo pedia compreensão, adesão. Ou, quem sabe, que fora escrito para alguém, para que o visse, para que desse valor ao seu gesto corajoso e solitário. Será que esse alguém o viu? Há coisas que só escritas ganham realidade para os outros. Os escritores, os poetas sabem isso. Os apaixonados também.
Foi o que me pareceu ler no escrito logo ali ao lado, como um post scriptum a querer levar a mensagem ao destino.

Tempos depois (21 de dezembro): parece que eu é que estava a precisar de um post-scriptum. Li hoje no jornal uma notícia que me explicava o que eu não percebi ao ver o escrito na parede. Dizia, às tantas: ”Em 2018 foi introduzida a possibilidade de menores a partir dos 16 anos requererem a mudança de género e de nome no registo civil sem necessidade de qualquer relatório médico que atestasse a disforia de género, desde que com consentimento familiar.” Supõe-se que os adultos nem de consentimento precisam. É isso a autodeterminação: a vontade da pessoa transgénero é acatada e respeitada sem mais intermediários. E todo o processo é gratuito, esclarece também a jornalista (Daniela Carmo). Fico a saber. Mas o “post-scriptum” na parede tem piada na mesma, há que convir.

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