hoje vou contar uma história. A mim, quem ma contou foi o Rudolfo. Em episódios semanais, cada vez que lhe vou falar, no jardim de Santa Clara, onde ele monta uma tendinha a vender as verduras que cultiva numa pequena quinta perto do Cartaxo, não muito longe da Azambuja. Como só cá vem aos sábados, só falo com ele uma vez por semana, enquanto avia os fregueses. É uma história em jeito de folhetim.
Tudo começou há cerca de um ano, quando o Rudolfo começou a sentir a falta dos abelharucos ali em redor. Lindos como são, não admira que se note a ausência deles. Vinham aos montes, agora nenhum. Nem um.
E vai uma.
Em vez disso, quem apareceu foram os saca-rabos. Aos montes. Tantos que não tinham medo de nada. Nem dos cães, nem do Rudolfo. Ficavam ali a rondar, à espera que eles se fossem. O problema eram as galinhas: não saíam, nem saem ainda, da capoeira. A erva verdinha, bichinhos que a chuva chama, lá fora à espera delas e elas nada. Estarrecidas de medo. Paralisadas.
E vão duas
E também as raposas vieram, também elas atrevidas, sem medo. O Rudolfo teve que eletrificar a cerca para que elas não chegassem à capoeira. Mas elas já perceberam que com a chuva a eletricidade não dá choque. E atrevem-se.
E vão três
As galinhas ainda mais aterrorizadas, não saem nem põem ovos. A tal ponto que o Rudolfo está a pensar abandonar a criação. Já lhe propus (eu e outros) “adoptar” algumas galinhas: ele continua a criação e nós pagamos os custos (para garantirmos os ovos – maravilha que são – quando a crise passar. Se passar.
E porquê? alguém dirá. Ali à volta todos os agricultores se queixam do mesmo. Todos se perguntam o que terá mudado capaz de explicar o mistério. Mas não há mistério nenhum. O que há é que na herdade da Torre Bela, não muito longe dali, deram início ao maior projeto de instalação de painéis fotovoltaicos do país. Para isso começaram por desmatar centenas de hectares (são milhares de painéis isntalados em contínuo), ou seja começaram a destruir a casa das espécies que lá moravam, as cobras e lagartos, os pássaros, e a bicharada do costume. Houve um estudo de impacto ambiental, como agora é de uso. E também como de uso constatou os impactos negativos e tal, propôs medidas de mitigação e de compensação e tal, mas “contudo, acabou por concluir que do ponto de vista social e económico, o projeto é considerado positivo pela criação de emprego” e tal.
Esta Torre Bela já tem currículo, haverá quem se lembre.
Para já, há o documentário de Thomas Harlan (título “Torre Bela” está no YouTube – https://www.youtube.com/watch?v=L6OiWT38gvk), que mostra a ocupação da herdade nos tempos do verão quente de 75. O filme inclui uma entrevista incrível com o proprietário Duque de Lafões, um concentrado de arrogância, despudor e ignorância. Só visto. E realmente vale a pena ver – pela entrevista e sobretudo pelo resto.
E depois há a montaria em 2020 que massacrou mais de 500 animais, sobretudo veados e javalis, levada a cabo por uma “organização de eventos”. Houve queixas; houve denúncias de munições proibidas; houve repúdio por parte das verdadeiras, legítimas, puras organizações de caçadores; houve inquéritos e tal. O costume. Mas ao que parece nada disso trouxe de volta os coitados dos gamos e dos javalis. O costume.
E agora temos isto.