às duas por três chegou

Chegou, e ao chegar mudou muita coisa. Com o mesmo à vontade e o mesmo desplante de quem muda os móveis de lugar. Nós aqui, muito ensimesmados, graves, assentes na nossa verdade, a fazer o que se deve fazer, como se deve fazer. E vem ele e como um miúdo traquinas, desfaz-nos o sério, desfaz-nos a gravata, e desata a pintar a manta, com cores como nunca se viu. Pusemo-nos à escuta.

As cantigas começam a povoar-se de uma gente nunca antes vista: gente que mora num segundo andar em prédios mal isolados, gente que vem de reformatórios, que sabe jogar matraquilhos, que come em bancos corridos. Uma gente como a gente, enfim. Percebemos que a cantiga é outra. E isso é o que o Sérgio (Godinho) nos trouxe e nos pareceu novo quando chegou.

Havia coisas de que era preciso falar e falar nelas metia ceifeiras, searas, papoilas rubras, foices erguidas. E vem o Sérgio e, zás, põe lá no meio um trator. Um trator?, assim tão inesperado? Sem punhos no ar, sem foices erguidas? Isso mesmo: um trator, prosaico e útil como uma ferramenta e ao que parece bem mais a calhar quando a gente que o trabalha não tem nada que lhe valha.

E também outras coisas. O mundo do “é assim”, está agora a ser diferente. Mulheres, raparigas, que antes o amor dobrava às fantasias ou à força macha dos que as amavam, aparecem agora em versos que fazem rimar eles com elas, no mesmo pé. Para onde terão ido aquelas imagens idealizadas de amadas que enchiam as rimas das cantigas que conhecíamos? Havia então uma outra maneira de amar? Pois. E era disso que o Sérgio falava (e fala ainda, olha lá!)

Há outras coisas que se notavam, que se notam, menos, mas que lá estão. Fazem o seu caminho e, muito lá no fundo, para quem tem ouvidos para ouvir, chegam onde devem chegar. A cantiga é outra. A poesia é outra. Menos gentil, mais O’Neill. Trocas e trocadilhos dos da vida airada, jogos de palavras, rimas despoéticas,

Não falo das músicas, que tanto não sei. Embora se sinta que há menos violinos, menos tremidinhos, menos gorjeios. Há rock, há música popular, acenos (olá, música tradicional) ao que sempre fomos, mas abraços fortes ao que hoje somos.

Bem, por isso mesmo é que ele tem a ver connosco. Com todos (ou quase), como o puto que chegou há uns anos, que cresceu connosco e que pelo caminho foi escrevendo, com música a acompanhar, a vida que vamos vivendo. Para nós (alguns), é ele o mais fiel cronista de uma certa maneira de viver.

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